A santa obediência. Em defesa do Padre Júlio Lancelloti.

Posted on 21 de dezembro de 2025 por

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Por Luis Fernando Amstalden

O arcebispo de São Paulo proibiu o Padre Júlio Lancelotti de transmitir suas missas ao vivo pela internet e também d postar nas redes sociais. Segundo o arcebispo, que usou termos “caridosos”, a intenção é a de “proteger o padre”. Mas proteger do quê?

De pato, padre Júlio sofre enormes perseguições e isso desde que chefiava a “casa vida”, instituição que acolhia crianças portadoras de HIV que eram abandonadas. Naquela época não havia o coquetel que controlava a infeção e muitas das crianças morreram. Para o Padre, aquelas crianças eram filhos e filhas e muitas delas o viam também assim. Quando morriam, ele sentia a dor que pais e mães sofrem quando perdem filhos e filhas. Naquela época também, por duas vezes, tentaram incendiar a instituição. Por quê? Porque diziam, e eu me lembro disso, que a presença das crianças “contaminaria” a vizinhança com o vírus.

Depois ele foi perseguido por assistir menores infratores e, agora, nos últimos anos, por atender moradores de rua dando-lhes comida e, quando possível, treinamento profissional e assistência médica. Ele já foi largamente difamado, teve vídeos fraudulentos vazados, foi acusado de pedofilia, de aproveitador e também ameaçado de morte. Com todo esse quadro, a preocupação do arcebispo em protege-lo parece legítima. Mas só parece.

E só parece porque o efeito é o contrário. A proibição sem que os motivos sejam esclarecidos, alimenta seus detratores, alimenta aqueles que querem o fim de suas atividades porque a presença dos moradores de rua desvaloriza os imóveis no entorno. Alimenta queles que querem simplesmente a eliminação dos moradores de rua porque eles são a “escória” da sociedade. Eles são os “derrotados”, os que “não querem trabalhar”, os drogados e loucos. Alimenta a extrema direita que não é capaz de esconder seu desejo de proceder a eliminação dos mais vulneráveis e fracos, como o nazismo fez ainda antes do Holocausto. E todos esses cheios de ódio e interesses econômicos frios, estão agora em estase, divulgando as velhas notícias que buscam destruir o Padre e sua obra. Buscam um cristianismo elitista, alheio a dor e a pobreza do outro, o que, pelo menos para mim, não parece nada cristão.

Mas não é só esse o efeito da “proteção” do arcebispo ao Padre. Com sua atitude, o arcebispo “chamou para si” também toda a desconfiança dos católicos, cristãos e mesmo seguidores de outras religiões e  ateus que, não sendo insensíveis e conhecendo a obra do Padre, acreditam agora que a censura é um ato de conluio com os grandes detentores de capital, com os políticos e com a extrema direita. E, talvez ainda pior, que a censura talvez se deva a vaidade do prelado e a inveja e ressentimento de outros membros do clero que nunca tiveram e nunca terão a coragem de abandonar seu conforto, suas boas roupas, bons carros e renda, para estar entre os pobres, fracos e sofredores como o Padre Júlio. Pessoalmente eu já presenciei algo assim, presenciei a pressão sobre um sacerdote para que ele saísse de uma favela onde vivia porque os fieis o comparavam a outros padres.

Se o arcebispo quisesse “proteger” o Padre, talvez tivesse sido melhor  apoiá-lo e não censurá-lo. Talvez tivesse sido melhor ir celebrar uma missa transmitida pela internet, junto com o Padre Júlio. Eu penso que seria isso que D. Paulo Evaristo Arns e Dom Hélder Câmara teriam feito, até porque quem apoiou muito o Padre Júlio foi exatamente Dom Paulo, ainda na época da “casa vida”. E isso para não falar do próprio papa Francisco I que ligou para o Padre animando-o a prosseguir.

Ao que parece, ao afastar  Padre Júlio da internet, o arcebispo evocou a “santa obediência” e eu tenho ouvido outros clérigos evocarem o mesmo princípio. Só que para mim, essa “nobre virtude clerical” é muito controversa. Por ela será que clérigos e leigos deveriam ter apoiado a escravidão porque isso seria a obediência à Igreja e seus hierarcas que a legitimavam? Deveriam ter apoiado a inquisição, a perseguição aos judeus, aos chamados hereges e ainda aplaudirem seus suplícios horrendos? Deveriam os católicos todos apoiarem as cruzadas e tomarem armas para massacrar muçulmanos e judeus na Palestina?

Haveria muito mais a dizer sobre o que a Igreja já fez e ainda faz em nome da “santa obediência”, mas isso não cabe aqui e existem livros inteiros sobre esses fatos. O que cabe aqui é dizer que eu sou católico e não me rendo a essa ideia. Eu não jurei obediência a bispo algum. Na minha crisma eu confirmei meu propósito, que é difícil, até porque eu sou fraco e não tenho a coragem do Padre Júlio e de tantos outros e outras que conheci. Porém eu continuo fiel a minha confirmação e busco seguir a Cristo e não a homens. E devo dizer que, embora não seja especialista nos Evangelhos, não me lembro de alguma passagem em que Cristo tenha dito “obedeçam-me”, mas me lembro das palavras de “sigam-me”. Tampouco me lembro de Cristo ter dito aos discípulos para se calarem, mas para apregoarem o Evangelho e a defesa dos pobres, fracos e enjeitados.

Penso que se Jesus subiu ao monte para pregar, hoje ele usaria as redes sociais e não se deixaria calar como não se deixou calar pelos poderosos da religião naquela época. Mas ao expulsar o Padre das redes sociais, o arcebispo parece adotar uma tática de “inviabilização” que, ao final, enfraquecerá a obra e os princípios mais nobres do cristianismo, além de enfraquecer e jogar as feras um homem de quem, por sua coragem e coerência, eu não tenho a menor legitimidade para criticar e nem motivos para acreditar em conspirações.

“Vós sois a luz do mundo. Não se pode esconder uma cidade situa­da sobre uma montanha nem se acende uma luz para colocá-la debaixo do alqueire, mas sim para colocá-la sobre o candeeiro, a fim de que brilhe a todos os que estão em casa. (Mateus 5:15-16)?

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