Sou abençoado (e ás vezes amaldiçoado) com uma memória muito boa. Lembro, por exemplo, de uma propaganda do final dos anos oitenta e início dos anos noventa, na qual uma empresa de frios tentava introduzir o hábito de se consumir peru na Páscoa. Um garoto falava, tendo ao lado alguém vestido como uma ave. A fala do menino era mais ou menos a seguinte: “A Páscoa foi inventada pelos antigos egípcios para ajudar a indústria a vender chocolate e a empresa “X” a vender peru..”. Dali em diante eram elencadas as vantagens do produto.
Poucas propagandas ilustram alguns fenômenos sociológicos como esta. Ilustra por exemplo, a característica do capitalismo em transformar tudo em mercadoria, de colocar tudo a serviço do consumo e, como dizia Karl Marx, de “profanar tudo o que é sagrado”. Também demonstra muito claramente o caráter da cultura pós moderna (ou hipermoderna como querem alguns) que, na mesma linha de transformar tudo em mercadoria, “esvazia” os rituais sociais de um sentido mais profundo, limitando-os à venda de produtos e/ou a uma festividade alienada, sem muito sentido.
Você pode argumentar que, se uma pessoa não é religiosa, tanto faz. Ela pode comemorar somente com produtos, independente de outros significados. De fato, pode ser assim. No entanto eu percebo uma perda nesta redução da festa ao consumo. Ocorre que tanto as celebrações egípcias (feitas para comemorar as cheias do Nilo e, portanto a vitória da vida/água sobre a morte/deserto) quanto a Páscoa Judaica e a Páscoa Cristã, eram e são rituais com um simbolismo psicológico e filosófico importante. Relembram o ciclo de morte e renascimento e celebram uma expectativa humana, a da continuidade da vida, da construção e da renovação.
Festas deste tipo não são exclusividade das culturas que citei. Na verdade estão presentes, com maior ou menor complexidade, em praticamente todos os povos. Na nossa sociedade porém, a medida em que tudo se torna produto e consumo, as dimensões mais profundas dos rituais e das festas se perdem. A marcação filosófica e social do tempo é reduzida aos períodos de compra: época de comprar ovos de chocolate, época de comprar presentes de Natal e assim por diante. Não há espaço para uma reflexão do simbolismo mais profundo de cada época/festa, mas somente a preocupação em adquirir os bens que, diga-se de passagem, também mudam o tempo todo, causando uma necessidade de adquirir sempre mais ou diferentes tipos (este ano é o ovo de Páscoa de “colher”…)
Nossa vida é dinâmica. Um dia não é igual ao outro e muito menos um ano. Nós envelhecemos, crescemos, mudamos. Pessoas nascem e morrem, projetos são iniciados, desenvolvidos e concluídos e alguns fracassam outros tem sucesso. A festa da Páscoa, no nosso contexto, é um momento de repensar projetos e esperanças, de celebrar a vida que temos a nos propormos a uma vida nova. Se você é religioso pode celebrar a vida nova aqui e aquela que acredita que virá. Se não é, pode celebrar o milagre de estar vivo agora e o que quer construir para o futuro. E sempre há o que construir e renovar, por mais velhos e realizados que estejamos. Sempre há uma vida nova a ser alcançada. Busque-a, celebre esta esperança. Na Sexta Feira Santa, deixe “morrer” as dores, os medos, o que é velho e não lhe serve mais, e no Domingo de Páscoa comemore o início de um novo período, um período no qual você vai ser diferente, vai buscar o crescimento e a sua renovação, bem como a da vida.
Coma seu chocolate e, se quiser, até um peru. Mas não limite o significado da Páscoa a isso. Não se deixe determinar por um interesse econômico que não é o seu e nem que sua vida seja limitada por ele. Você é um ser humano, impar e capaz de muitas coisas, capaz de vencer (sendo religioso ou ateu) o medo da morte e alcançar a vida plena aqui. Busque isso e tenha uma Feliz Páscoa.
Posted on 24 de abril de 2012 por blogdoamstalden
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