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Vendo o desespero de crianças levadas correnteza abaixo, se atiravam para salvá-las. Mais crianças desciam; conseguiram resgatar muitas, outras se foram. Mais pessoas surgiram para ajudar, e assim noite e dia revezavam plantões. As organizações, a imprensa e os poderes da cidade enalteciam o trabalho e chamavam aqueles voluntários de heróis, que passaram a gozar de elevado conceito na sociedade. Doações chegaram, os políticos repassaram verbas e até conseguiram uma sede.
A iniciativa foi se formalizando até virar uma entidade de grande porte com funcionários, patrimônio e tudo mais. Quando entrava em apuros, a cidade organizava festas que duravam dias, unindo assim o útil ao agradável. A elite podia comer beber e esnobar seus dotes sem escrúpulos, afinal estava ajudando e fazendo sua parte.
O empreendimento virou referência na região. A população havia até mentalizado que tirar crianças do rio era exclusividade da entidade, mesmo não dando conta, afinal ninguém vai mesmo salvar o mundo.
Numa das reuniões onde discutiam meios para aumentar recursos, um jovem voluntário perguntou se em vez de pedir donativos aos cidadãos, que já pagam impostos demais e ficar amarrada aos políticos que usam entidades para se promover, não seria mais racional e sensato descobrir quem fazia isso com crianças. Quem está se afogando não pode esperar, disseram; além disso, talvez mexessem onde não deveriam; e para enterrar de vez o incômodo palpite, alegaram que se isso acontecesse a entidade deixaria de existir, muita gente perderia o emprego e a cidade sua referência. Aos poucos aquele ousado jovem foi se sentido cada vez mais isolado até perceber que estava sobrando. A entidade continuou crescendo e tirando do rio as crianças que podia.
Alguém me contou essa metáfora; resolvi espichá-la por conta a fim de levantar algumas questões. Começo com uma colocação de Vininha F. Carvalho, ambientalista nA Tribuna de 09.02.12. “A responsabilidade social enfoca a busca de solução do problema…. A caridade investe na consequência, dificultando que o problema seja resolvido, pois não estimula a união de esforços para descobrir a verdadeira causa do problema. O assistencialismo é imediatista”.
O trabalho das obras beneficentes é muito importante, afinal a necessidade não pode esperar. Mesmo servindo de pódio para alguns, ninguém pode negar o bem que fizeram e fazem. Contudo, tenho dúvidas se a situação seria melhor ou pior sem elas. “Segundo o CPS – Centro de Políticas Sociais da FGV, entre 1994 e 2010 a pobreza caiu 67%, e mais de 50 milhões de pessoas foram incorporadas à classe média. A partir de 2003 a desigualdade caiu em ritmo mais rápido com a aceleração do crescimento econômico, a formalização do mercado de trabalho e o alargamento da cobertura de programas sociais durante o governo Lula” (Folha de S. Paulo 19.01.12).
Por mais que se esforcem e recursos que tenham, as entidades jamais conseguiriam resultado parecido. A obrigação, portanto, é dos governos e só eles têm poder para tal. Não faz enquanto tiver quem faça sozinho. Aliás, o número elevado de instituições beneficentes indica o grau, não de bem estar, mas de injustiça e exclusão de uma sociedade.
Em vez de se limitar a ajudar os pobres e se promover à custa dele, a sociedade deve se indignar que ainda haja gente na pobreza, e exigir que faça quem tem o dever de fazer. Caso contrário continuará pondo remendo em trapo, favorecendo a indústria da Assistência e o surgimento de superávits de caixa, que poderão ser gastos em pontes com mirante e arco do triunfo, portais, salários astronômicos para parlamentares, desembargadores e funcionários marajás; ou ser devorado pela corrupção.
Antônio Carlos Danelon é Assistente Social e colabora frequentemente neste Blog.
Jonas
24 de maio de 2012
Recomendo o filme brasileiro: Quanto Vale ou É Por Quilo? “O filme faz uma analogia entre o antigo comércio de escravos e a atual exploração da miséria pelo marketing social, que formam uma solidariedade de fachada. O filme faz uma grande crítica às ONGs e suas captações de recursos junto ao governo e empresas privadas.”
blogdoamstalden
24 de maio de 2012
Tirou as palavras de minha boca, Jonas. O filme é fantástico e tem tudo a ver com os questionamentos do artigo. Recomendo também, e muito.
Antonio Carlos
25 de maio de 2012
Gratificante ver pessoas que percebem outro lado das coisas. Falando nisso, a Festa das Nações é uma festa feita para os pobres mas sem eles. Também recomendo o filme Quanto vale…Bem lembrado.
André Gorga
26 de maio de 2012
Bem propício o texto, em época de “Festa das Nações” em Piracicaba. Como não sou bom em fazer analogias ou utilizar metáforas, vou dizer na lata: a mim essa festa a cada ano parece mais uma confraternização entre “socialites” que podem pagar caro por um “prato-de-comída-típica-nem-sempre-fiel-às-origens”, que um movimento realmente assistencialista
onde as pessoas que frequentam estão conscientes do que estão fazendo ali. Acho que ações governamentais e projetos e movimentos sócio-culturais desenvolvidos por ONGs sérias e pessoas físicas éticas e responsáveis, hoje, são mais eficientes que esse tipo de assistencialismo, mas pena que são em número reduzido se comparados às entidades assistenciais, e que, os empresários, especialmente de Piracicaba, relutem em apoiá-los, mesmo qdo. os projetos são aprovados pela Lei Rouanet de incentivo fiscal, o que permite ao patrocinador abater do imposto a verba doada.