No Final, as Latinhas. Por Luis Fernando Amstalden

Posted on 27 de dezembro de 2012 por

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Conheci-os a pouco, na semana passada a noite, para ser mais exato. Nasceram em uma cidadezinha no Sul de Minas, na zona rural. Ele em 1931 e ela em 1933. Saíram de sua região porque o solo era ruim para a agricultura. Foram a São Paulo e lá viveram por trinta e seis anos. Em Piracicaba estão já a quase trinta, desde que vieram para ficar perto do filho que aqui se estabeleceu. Trabalharam a vida toda, na agricultura, em serviços braçais e domésticos (ela). Agora aposentados eu os encontro no centro da cidade, numa noite de comércio aberto para o Natal. Dentre dezenas de passantes ocupados em comprar, ele está sentado em um banco de madeira e ela caminha ao longo da quadra com uma bengala. Suas roupas são modestas mas novas. Ele tem uma atadura recém colocada no cotovelo, mas não disse porque e eu não perguntei. Ela usa uma bengala, mas aparenta firmeza no caminhar, apesar da lentidão. Pendurada no braço dela está uma sacola plástica, assim como há outra ao lado dele. Mas as sacolas não contêm compras, e sim latinhas de alumínio que pretendem vender.

Assinaram com entusiasmo o documento que eu ajudava a divulgar e aparentemente felizes por conversar com alguém, afirmaram que “tinham gosto” em participar uma vez que achavam injusto um aumento salarial tão grande para os políticos e tão pequeno para os aposentados. “O senhor sabe” me disse ela, “se a gente ganhasse um pouco mais não precisava catar estas latas”. Conversamos um pouco mais e eu fui embora com a mente em turbilhão. Tudo me marcou, desde a imagem deles tão arrumados dentro de suas possibilidades, quanto o contraste entre as sacolas de compras dos passantes e a sacola de latas que carregavam. Penso que eles podiam e mereciam estarem ali passeando apenas ou fazendo as suas compras. Mas estavam ainda fazendo o que fizeram a vida toda, estavam trabalhando. Dentre as dezenas de coisas que passaram pela minha mente, lembrei-me de uma notícia que havia lido e guardado em setembro passado.

A mulher mais rica do mundo, Gina Rinehart, australiana herdeira de um império de mineração, declarou que a Austrália está ficando fora da competição internacional devido aos “altos salários” que seus empresários precisavam pagar. Ainda segundo a Sra. Rinehart, o “ideal” era o salário que os africanos “desejavam”, de aproximadamente R$ 4,00 por dia. Um pouco antes, na mesma semana, a bilionária já havia pedido que o governo australiano diminuísse o salário mínimo a fim de atrair mais investimentos. Sobre sua riqueza e a pobreza alheia, Rinehart também declarou que “Se sentem inveja dos que têm mais dinheiro que vocês, não fiquem sentados reclamando. Façam algo para ganhar mais, passem menos tempo bebendo, fumando e brincando, trabalhem mais”. (UOL Notícias, 05 de setembro de 2012).

Gina Rinehart

Gina Rinehart

Eu não sei se o casal de idosos que conheci passou muito tempo brincando, bebendo e fumando. A julgar pela sua saúde, creio que não. Penso também que eles trabalharam muito, e continuavam a fazê-lo, talvez para ganhar com sua sucata,  até um pouco menos que os africanos. Tampouco sei o quanto a Sra, Rinehart trabalhou. Sei que ela herdou a fortuna de trinta bilhões de dólares, mas talvez tenha trabalhado bastante para mantê-la.

O que eu sei de fato, é que o pensamento da bilionária australiana não é incomum. As pessoas, principalmente as mais ricas, costumam em nossa sociedade, atribuir a pobreza à preguiça, aos maus hábitos e a falta de trabalho duro. No limite, atribuem até a falta de inteligência. E sei também que milhões de pessoas trabalham duro todos os dias, em todos os continentes. É o trabalho delas que gera a riqueza de todos, que gera os alimentos, os minérios e os produtos que as pessoas compravam tão avidamente naquela noite. Sei que os africanos e os demais pobres do mundo, não “desejam” um salário de quatro reais diários. Eles o aceitam para sobreviver, porque precisam. O que eles desejam de verdade é viver, e viver dignamente, da mesma maneira que eu e você.

Existem pessoas preguiçosas sim, bêbadas sim, más sim, mas eles não são a esmagadora maioria dos trabalhadores que lutam todos os dias para criar a riqueza de poucos. A maioria das pessoas trabalha duramente sua vida toda e continuará a fazê-lo até que a sua saúde não lhes permita mais do que apanhar as latas, o lixo que aqueles que tem mais ou apenas acreditam que tem mais, descartam nas ruas. O que eu sei é que nossa sociedade é hipócrita e atribui ao mérito pessoal seu caráter exploratório. O que eu sei, por último, é que vivemos a falsa riqueza de produtos baratos e consumo a crédito, mas que no final, teremos que nos defrontar com a realidade. E a realidade é a de que poucos têm o fruto do trabalho e muitos terão, ao final, somente as latinhas.

Dica de texto sobre capitalismo:

http://www1.folha.uol.com.br/colunas/vladimirsafatle/1206071-capitalismo-de-espoliacao.shtml

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