Eu tomava um café no centro da cidade quando um garoto entrou e me pediu um pão de queijo. Olhei para a criança, de uns oito ou nove anos, mal vestida, magra e com manchas de verminose na pele e não pude negar. Solicitei à balconista que lhe desse o salgado e pusesse em minha conta. O garoto o recebeu e saiu. Bem em frente ao café e bem em frente a minha mesa, ele entregou o pão a um marmanjo enorme, obeso e saíram com o adulto comendo calmamente o pão de queijo que eu havia pago pensando que era para o menino. Fiquei tão surpreso com a falta de vergonha que não tive reação. Deveria ter chamado a polícia, que por sinal estava ali por perto. Esta foi somente uma das vezes em que fui enganado por gente assim. Em outra, em São Paulo, eu estava na Avenida Paulista quando fui abordado por uma mulher, também obesa e aparentando saúde. Ela trazia um cateter espetado no braço e alegava ter saído do Hospital das Clínicas ali perto onde se submetia a sei lá que tratamento, e não ter comido ainda. Confesso que desconfiei, particularmente do tom mais enfático, quase agressivo da mulher, mas acabei dando-lhe o suficiente para um “marmitex” ali mesmo. Quase duas horas depois, voltando pelo mesmo local, eu a vi novamente, ainda pedindo pelo almoço aos passantes… Tornei a vê-la no dia seguinte o no outro e ao perceber meu olhar, ela riu.
Por estas e por outras, algumas das quais eu nunca soube o quanto fora enganado, desisti de ajudar pessoas na rua. Não porque o que lhes dei me privasse de algo, mas por simples tristeza de ver gente fazendo da pobreza que está em nossa volta, uma indústria e uma profissão. Aliás, isso é coisa velha. Consta que em Paris dos séculos XVIII e XIX, os pedintes se organizavam em clãs, se especializavam em simular doenças e obedeciam a um líder, apelidado de “rei dos mendigos” a quem se tinha que pagar um tributo diário sobre o fruto da mendicância. Na China do início do século XX, associações de mercadores chineses e grupos de missionários ocidentais, promoviam a distribuição de tigelas de arroz aos pobres. Mas exigiam que as mesmas fossem consumidas no local de distribuição, uma vez que havia quem levasse para vender nas ruas mais tarde. Na África contemporânea, associações humanitárias estão distribuindo alimentos somente às mulheres e sob guarda armada, uma vez que homens costumam se apossar do que é distribuído e vender para comprar bebidas e cigarros. Entregar somente a mulheres previamente cadastradas e escoltá-las com armas para casa, dá alguma chance de que a comida acabe na mesa para alimentar as crianças. No Brasil, cansei de acompanhar denuncias contra entidades beneficentes que desviavam verbas adquiridas e, talvez ainda mais triste, é o cálculo que se pode fazer a respeito de quanto é arrecadado por muitas e o quanto realmente chega aos que necessitam.
Há uns quinze dias, no entanto, vi, também novamente, uma vez que não foi meu primeiro encontro com isso, a outra face da pobreza. Eu tomava um lanche no final da tarde, antes de minhas aulas noturnas e de minha mesa vi um homem mal vestido, de certa idade, se aproximar do segurança da padaria. Falou algo ao ouvido do guarda e este fez um sinal para que ele esperasse. O homem mal vestido esperou. Esperou o suficiente para que eu acabasse de comer e fosse ao caixa pagar minha conta. Lá eu continuei a observá-lo. Neste momento, o segurança que havia entrado, voltou com um saco de papel engordurado, provavelmente cheio de salgados. O homem pobre avançou para receber o saco e, então, antes mesmo de pegá-lo, deparou-se com meu olhar. Para meu espanto ele baixou a cabeça e recuou para a penumbra na qual havia esperado, sem pegar o que lhe dava o segurança. Foi tão intenso o gesto que o guarda se virou para ver o que acontecera. Ao me ver, falou algo novamente ao homem que enfim apanhou os salgados. Mas antes de sair com o pacote, ele me olhou e deu um sorriso tímido, baixando novamente os olhos e só então foi embora.
Aquele homem é o verdadeiro pobre, a verdadeira face da pobreza, aquela que não utiliza de subterfúgios, não fala alto, não apregoa seu sofrimento. Talvez eu estivesse enganado, talvez seu sentimento não fosse aquele que seus olhos pareceram mostrar aos meus, o sentimento de vergonha por estar pedindo e recebendo algum alimento. Enfim foi o que eu senti na atitude daquele pobre que buscou, instintivamente, ocultar-se nas sombras quando percebeu meu olhar.
Confesso que não confio em pedintes de rua, naqueles que falam alto e até agressivamente, exibindo sua pobreza como um estandarte de direitos. Tampouco confio na maioria das entidades que pululam na pobreza como moscas na sujeira. Em minha opinião a maioria delas se profissionalizou e com seus pobres, mantêm um exército de empregados e uma rede de influência política. Mas confio no sentimento do verdadeiro pobre, daquele que não se aproveita de sua situação e teme incomodar os demais, como aquele homem parecia temer incomodar os clientes da padaria de alto padrão. Confio também na solidariedade silenciosa, sem alarde, sem festas, sem vaidades, como a daquele segurança que entregou ao homem alguma comida e que também me sorriu encabulado quando passei por ele ao sair da padaria, como se seu gesto estivesse fora de lugar, como se seu gesto fosse me incomodar.
Incomodou sim, mas de modo algum da maneira como ele deve ter pensado.
andregorga
24 de maio de 2013
Realmente, sempre ficamos em dúvida quanto à real necessidade do pedinte. Aproveitando esse tema: Não sei se alguém reparou numa senhora que está constantemente pedindo esmola no cruzamento da rua Santa Cruz com a Av. Saldanha Marinho (Viptur). Ela está sempre com a mesma calça marrom e uma camiseta laranja (às vezes vermelha). Como esse é meu caminho para o trabalho, sempre sou abordado por ela. Certo dia, um amigo que estava comigo no carro me disse: “- Essa é profissional”. A partir dali, comecei a olhar com outros olhos a pedinte. Reparei que as roupas, apesar de serem as mesmas, estão sempre relativamente limpas (se morasse nas ruas não seriam assim). Comecei a ver aquelas roupas como se fossem um uniforme de trabalho. Independente disso, quando tenho algumas moedas disponíveis no carro eu colaboro, pois geralmente é um valor que não me fará falta, mas fica essa dúvida: É ou não uma pessoa realmente necessitada?
Evandro Mangueira
24 de maio de 2013
Amstalden, talvez por ter vindo do sertão, talvez por temer a minha própria fome em dado momento, essas histórias me tiram lágrimas. Seja porque tudo vira mercadoria, até mesmo a miséria, seja porque de fato tem gente que passa o pior dos males na terra: fome.
Ninfa Sampronha Barreiros
24 de maio de 2013
Fica difícil para qualquer um solidário passar por essas pessoas e com tais cenas não colaborar ou passar por momentos reflexivos de que a verdadeira pobreza, não digo que ela cause vergonha, mas impotência. Sempre vejo alguém que me fala: peço,por não achar uma outra forma a não ser a de pedir.
Carla Betta
24 de maio de 2013
Lindo texto, comovente! Passar fome ainda não é o pior dos males; ver os seus passando fome junto com você e se sentir impotente é TERRÍVEL! Diante deste terror as entranhas se remexem, as lágrimas brotam e a indignação se supera ao constatarmos a “indústria da pobreza”! É triste, é desolador, mas não podemos deixar de nos comover e tentar mudar este estado de coisas, para não deixarmos de sermos humanos!
Gisele
24 de maio de 2013
Eu não gosto de contribuir com dinheiro, mas quando me pedem comida na porta da minha casa eu dou, comida pronta. Eu tenho um exemplo em minha família de pedinte, mas é para o consumo de crack e devido a isso não consigo entregar nem cinco centavos, pois é muito triste saber que estou colaborando para a morte daquela pessoa, já ouvi muitas histórias, das quais pensei depois, será que estou sendo tão ruim ? Mas, eles são feras, falam de tudo, as vezes meu filho fica magoado ao ver eu negando o dinheiro, mas explico porque não consigo dar, esse exemplo que tenho em minha família já disse que um dia na Rua Rui Barbosa de uma ponta a outra conseguiu $50. para ele fazer oque ?
Outro dia fui na igreja e o palestrante disse que da dinheiro sim aos pedintes porque eles sim vão para o céu, fiquei indignada, mas cada um acredita no que quiser, eu não quero contribuir para os usuários de drogas acabarem com a suas vidas.
Antonio Camarda
12 de junho de 2013
A miséria, a pobreza , a carência, geram as mais diversas reações e modo de agir do necessitado , sendo que sempre o que mais sofre é o humilde, aquele que por “n” razões foi colocado fora das possibilidades minimas de sobrevivência . Estes tem vergonha de pedir , e quando encontram algum sub emprego , além de explorados , são vistos com desprezo…..Conheci uma senhora, amiga da família , que com um espírito de luta extraordinário acabou depois de muitos anos vencendo na vida sem ajuda de ninguem. . Mas quando contava que era solteira e mais velha da familia orfã cuidando de irmãos pequenos…as lágrimas escorriam pelo seu rosto ao contar: , pois trabalhava em uma casa de pessoas classe média alta em uma cidade pequena , e com muita vergonha pediu se poderia levar os restos de alimento que sobrava nos pratos………mas a patroa deu uma ordem expressa: você esta aqui pra trabalhar, jogue o que sobrar no lixo e nunca leve nada daqui.. Éla passou então, ao ir embora , pegar a comida do lixo escondida da patroa, para matar a fome dos irmãos. Mas não sentia-se bem pois achava que estava roubando , mas a fome éra terrivel ela contava, e as vezes ainda orava pedindo perdão por pegar a comida do lixo. E a patroa? Éra daquelas apegadas a uma religião que esta senhora não lembra…. Eu também já fui enganado por falsos mendigos, inclusive um de Piracicaba muito esperto , que enganou-me uma vez e depois diversas vezes tentou..mas eu o reconhecia e não dava nada. Encontrei-o contando a mesma história sabem onde ? E frente a um hospital na cidade de Uberaba M.G……É complicado…posso estar errado, se reconheço que é malandro, não ajudo, mas na dúvida , pelo sim pelo não .prefiro ajudar, dentro das possibilidades. .