A vergonha e a pobreza. Por Luis Fernando Amstalden

Posted on 24 de maio de 2013 por

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brasileiros honestos

Eu tomava um café no centro da cidade quando um garoto entrou e me pediu um pão de queijo. Olhei para a criança, de uns oito ou nove anos, mal vestida, magra e com manchas de verminose na pele e não pude negar. Solicitei à balconista que lhe desse o salgado e pusesse em minha conta. O garoto o recebeu e saiu. Bem em frente ao café e bem em frente a minha mesa, ele entregou o pão a um marmanjo enorme, obeso e saíram com o adulto comendo calmamente o pão de queijo que eu havia pago pensando que era para o menino. Fiquei tão surpreso com a falta de vergonha que não tive reação. Deveria ter chamado a polícia, que por sinal estava ali por perto. Esta foi somente uma das vezes em que fui enganado por gente assim. Em outra, em São Paulo, eu estava na Avenida Paulista quando fui abordado por uma mulher, também obesa e aparentando saúde. Ela trazia um cateter espetado no braço e alegava ter saído do Hospital das Clínicas ali perto onde se submetia a sei lá que tratamento,  e não ter comido ainda. Confesso que desconfiei, particularmente do tom mais enfático, quase agressivo da mulher, mas acabei dando-lhe o suficiente para um “marmitex” ali mesmo. Quase duas horas depois, voltando pelo mesmo local, eu a vi novamente, ainda pedindo pelo almoço aos passantes… Tornei a vê-la no dia seguinte o no outro e ao perceber meu olhar, ela riu.

Por estas e por outras, algumas das quais eu nunca soube o quanto fora enganado, desisti de ajudar pessoas na rua. Não porque o que lhes dei me privasse de algo, mas por simples tristeza de ver gente fazendo da pobreza que está em nossa volta, uma indústria e uma profissão. Aliás, isso é coisa velha. Consta que em Paris dos séculos XVIII e XIX, os pedintes se organizavam em clãs, se especializavam em simular doenças e obedeciam a um líder, apelidado de “rei dos mendigos” a quem se tinha que pagar um tributo diário sobre o fruto da mendicância. Na China do início do século XX, associações de mercadores chineses e grupos de missionários ocidentais, promoviam a distribuição de tigelas de arroz aos pobres. Mas exigiam que as mesmas fossem consumidas no local de distribuição, uma vez que havia quem levasse para vender nas ruas mais tarde. Na África contemporânea, associações humanitárias estão distribuindo alimentos somente às mulheres e sob guarda armada, uma vez que homens costumam se apossar do que é distribuído e vender para comprar bebidas e cigarros. Entregar somente a mulheres previamente cadastradas e escoltá-las com armas para casa, dá alguma chance de que a comida acabe na mesa para alimentar as crianças. No Brasil, cansei de acompanhar denuncias contra entidades beneficentes que desviavam verbas adquiridas e, talvez ainda mais triste, é o cálculo que se pode fazer a respeito de quanto é arrecadado por muitas e o quanto realmente chega aos que necessitam.

Há uns quinze dias, no entanto, vi, também novamente, uma vez que não foi meu primeiro encontro com isso, a outra face da pobreza. Eu tomava um lanche no final da tarde, antes de minhas aulas noturnas e de minha mesa vi um homem mal vestido, de certa idade, se aproximar do segurança da padaria. Falou algo ao ouvido do guarda e este fez um sinal para que  ele esperasse. O homem mal vestido esperou. Esperou o suficiente para que eu acabasse de comer e fosse ao caixa pagar minha conta. Lá eu continuei a observá-lo. Neste momento, o segurança que havia entrado, voltou com um saco de papel engordurado, provavelmente cheio de salgados. O homem pobre avançou para receber o saco e, então, antes mesmo de pegá-lo, deparou-se com meu olhar. Para meu espanto ele baixou a cabeça e recuou para a penumbra na qual havia esperado, sem pegar o que lhe dava o segurança. Foi tão intenso o gesto que o guarda se virou para ver o que acontecera. Ao me ver, falou algo novamente ao homem que enfim apanhou os salgados. Mas antes de sair com o pacote, ele me olhou e deu um sorriso tímido, baixando novamente os olhos e só então foi embora.

Aquele homem é o verdadeiro pobre, a verdadeira face da pobreza, aquela que não utiliza de subterfúgios, não fala alto, não apregoa seu sofrimento. Talvez eu estivesse enganado, talvez seu sentimento não fosse aquele que seus olhos pareceram mostrar aos meus, o sentimento de vergonha por estar pedindo e recebendo algum alimento. Enfim foi o que eu senti na atitude daquele pobre que buscou, instintivamente, ocultar-se nas sombras quando percebeu meu olhar.

Confesso que não confio em pedintes de rua, naqueles que falam alto e até agressivamente, exibindo sua pobreza como um estandarte de direitos. Tampouco confio na maioria das entidades que pululam na pobreza como moscas na sujeira. Em minha opinião a maioria delas se profissionalizou e com seus pobres, mantêm um exército de empregados e uma rede de influência política. Mas confio no sentimento do verdadeiro pobre, daquele que não se aproveita de sua situação e teme incomodar os demais, como aquele homem parecia temer incomodar os clientes da padaria de alto padrão. Confio também na solidariedade silenciosa, sem alarde, sem festas, sem vaidades,  como a daquele segurança que entregou ao homem alguma comida e que também me sorriu encabulado quando passei por ele ao sair da padaria, como se seu gesto estivesse fora de lugar, como se seu gesto fosse me incomodar.

Incomodou sim, mas de modo algum da maneira como ele deve ter pensado.

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