
Foto de Cezar Magalhães. Fonte : http://olhares.uol.com.br/assalto-com-refem-foto2897058.html
Quando minha mãe estava grávida de mim, uns cinco meses de gestação, chegou do trabalho e encontrou assaltantes em sua casa. Um deles encostou um canivete na sua barriga (e em mim, por extensão) e disse para que ela não gritasse. O instinto fez com que ela gritasse sim e, com um safanão, se livrasse do assaltante e corresse. Uma família vizinha a socorreu e os ladrões fugiram. Foi por isso que eu não nasci em São Paulo, mas em Piracicaba. Depois do fato tanto ela quanto meu pai pediram transferência e vieram para cá. Muito depois, quando eu já tinha vinte e cinco anos, nossa casa foi assaltada por três homens armados. Renderam meu irmão na porta e, na sala de jantar, renderam a mim, minha mãe, minha irmã adolescente, uma tia, o namorado de minha irmã e um amigo que visitava a família. Um dos assaltantes ficou nos vigiando, o outro foi vasculhar a casa e um terceiro ficou na rua, de vigia. Um pouco depois meu pai chegou e o que nos rendia na sala engatilhou o revólver e apontou para a porta por onde meu pai iria entrar. Eu me levantei devagar, argumentei que não estava armado e não iria reagir, mas que iria pegar meu pai na porta e trazê-lo até nós. Temia que o rapaz atirasse e matasse meu pai. Fui, mas com a arma engatilhada e apontada para minhas costas. Ao ouvir que estávamos sendo assaltados, meu pai fez menção de voltar para a rua. Eu impedi e o levei para a sala. Foi só então que o terceiro bandido entrou.
Nunca fomos ricos, mas meu pai, já aposentado, criava abelhas como hobby e, para tal função, tinha uma Kombi velha. Como era domingo, os bandidos acreditavam que trabalhávamos em feira livre e que, portanto, deveríamos ter dinheiro em casa. Não tínhamos, assim como não tínhamos vídeo cassete (na época isso era novo), nem cofre, nem dólares e nem mesmo uma segunda televisão (que aliás, nunca nos fez falta). Mas isso só frustrava os bandidos que nos ameaçavam e batiam com as armas na mesa. Não acreditavam no que não tínhamos e não aceitavam “perder o trabalho”. Levaram tudo o que puderam, do carro à roupas, passando pela aliança de meus pais que nem saia mais do dedo deles e teve que ser arrancada a força. Mas as perdas materiais não foram o pior. O pior foi ver meu pai ter um início de enfarte e ficar roxo, sendo amparado por meu irmão sob mira de armas. O pior foi o medo que eles atentassem contra minha irmã ou ferissem qualquer um de nós. O pior foi o fato de nos sentirmos impotentes e a mercê de qualquer capricho ou vontade daqueles jovens. E, pior de tudo, foi a sensação de ver meu pai passando mal e temer que ele morresse, não de um tiro, mas de um enfarte, na nossa frente sem que pudéssemos socorrê-lo. Isso não aconteceu, Graças a Deus, tampouco as agressões físicas. Mas até hoje eu tenho a certeza de que não consigo explicar a ninguém, que não tenha passado por isso, o que sentimos todos naquele dia. Foi como se perdêssemos de um golpe, toda a segurança psicológica e toda a confiança no mundo. Foi o terror.
Hoje olho para os jornais e vejo que nossa cidade está tomada por invasões deste tipo. Algumas muito mais violentas do que aquela que vivemos e com agressões feitas apenas por “capricho” dos assaltantes. Em outras cidades, como São Paulo, uma criança de quatro anos foi morta com um tiro na cabeça, sem motivo, apenas porque chorava de medo, num caso muito famoso. Pelo menos dois dentistas foram queimados vivos também por assaltantes, na materialização do pior terror, o da impotência diante do “capricho” do outro. Assim como nunca esqueci o que aconteceu, penso que aqueles que vivem estes ataques também nunca esquecerão. Como sociólogo e professor, eu conheço as causas deste tipo de crime. Sei que vem da desigualdade, da falta de perspectivas, da cultura de violência à qual os jovens estão sujeitos e na qual são criados. Vem de uma sociedade que competitiva, na qual o importante é “se dar bem”, sem se importar com os demais. De uma sociedade que mais do que ignorar os pobres, parece acreditar que a pobreza é culpa deles mesmo que, no mínimo, se reproduzem. Sei tudo de tudo isto como sociólogo e entendo.
Mas como ser humano, sei também o que é o medo, o terror. Sei a angústia de estar à mercê de pessoas armadas que tem o “poder” de fazerem o que quiserem, inclusive matarem, torturarem e violentarem a você e à sua família. Sei, talvez mais intensamente pela minha experiência ainda como feto, o que é a terrível sensação de poder morrer pelo capricho, pelo descuido, a raiva ou ainda o medo de outrem. Sei, então, que é um mundo injusto que cria a indústria do crime e estas agressões, mas sei também que aquele que é criado neste mundo, também agride e violenta, num ciclo infernal e sem fim. Não é uma situação simples. Não vai acabar facilmente. Mas é preciso se dedicar a ela já, urgentemente, sob o risco de perpetuarmos o terror, o medo e a violência indefinidamente. Isto significa sim, a inclusão social e as perspectivas dadas aos jovens para que saiam do mundo da violência. Significa políticas sociais urgentes, mesmo que ao custo de copas do mundo, estádios e pontes, para se gastar em inserção e promoção social. Mas também significa dar segurança aos que sofrem com os ataques. Não nos enganemos, os muito ricos estão protegidos, mas os pobres e as classes médias são o alvo quotidiano. Esta segurança, por sua vez, não se limita a mais polícia nas ruas e de forma alguma a “pena de morte” pela qual bradam alguns, Mas por uma justiça efetiva que possa, através das penas reais, demonstrar que existe um ônus para o crime. Lembro um slogan usado em uma campanha da qual participei anos atrás: “não há paz sem justiça”. E justiça, no caso, significa justiça social sim, mas também a justiça penal. Deixar de punir baseado somente no fato de que o agressor é uma vítima da violência econômica e social, pode significar somente um cinismo “pseudo humanista”, muito adequado a governos que querem se eximir de mais ações. Só punir, só agredir e matar, tampouco é o caminho. Se o fosse, o esquadrão da morte e a Rota dos anos sessenta e setenta teriam “resolvido” o problema. A solução tem que vir do equilíbrio de fatores. Isto é difícil, reconheço, mas ou começamos imediatamente a buscar tal equilíbrio, ou estamos condenando a nós e aos que virão depois ao ciclo infindável do terror e da injustiça.
adriano mazzi
8 de agosto de 2013
Excelente texto professor. Vivemos hoje numa sociedade em que a influência cultural vendida pela mídia mostra violência como sinônimo de respeito, ostentação como poder, atitudes não atreladas ao caráter, mas sim a conveniência das situações…
Valéria Pisauro
8 de agosto de 2013
Li o texto num fôlego só… atenta, apreensiva e agora me pergunto onde erramos?
Carla Betta
13 de agosto de 2013
A gente não sabe nada, não conhece nada, não sabe o que está sendo realizado nas periferias, esta é que é a verdade! Enquanto houver uma lacuna, um abismo entre as cidades dentro da mesma cidade é difícil mudar este estado de coisas. Somos segregados guetos que não se tocam, não se comunicam a não ser pela violência. Esquecemo-nos que somos parte de um todo. Bem colocada a questão da diferença da segurança entre as classes mais privilegiadas e encarceradas em suas casas luxuosas e a classe média à mercê dos menos favorecidos que optam pela marginalidade.