Seção Estante: O Sonho da Aldeia Ding. Por Luis Fernando Amstalden

Posted on 5 de outubro de 2013 por

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China contemporânea. A ordem é modernizar e enriquecer. O governo inicia um projeto de coleta de sangue no interior e paga aos doadores. No entanto, a doação obedece regras definidas. Idade, peso e estado de saúde determinam quem pode doar e quanto. Também são levadas em conta a data da última doação e a freqüência com que se doou, a fim de evitar a exaustão. O programa do governo chega às pequenas aldeias junto com a liberalização e desregulamentação econômica, despertando a cobiça de coletores independentes (alguns aqui talvez preferissem o termo “empreendedores”…). Pois bem, tais coletores/empreendedores para maximizar os lucros,  não respeitam as regras de coleta e, pior ainda, reutilizam seringas e demais materiais que deveriam ser descartados. Os lucros do comércio de sangue levam à um “boom” do consumo. Famílias que “doam”, vendem e compram sangue prosperam, adquirem produtos modernos e reformam ou constroem casas novas. Mas, com o tempo vem o inevitável. Uma epidemia de AIDS, provocada pelas agulhas reutilizadas, se instala e dizima a população, principalmente na aldeia Ding.

Lá, o velho zelador da escola, pai de um comerciante de sangue e de um doente de AIDS, tentar manter a ordem e chamar o filho enriquecido e a população para a realidade. Organiza o cuidado com os doentes na velha escola, importuna as autoridades e repreende duramente o filho. Mas a aldeia se desintegrou. A vida econômica entra em crise, assim como a vida social. Tudo o que resta é a luta do zelador para cuidar dos doentes e restaurar alguma cooperação entre doentes e sadios.

A economia, no entanto, graças à “visão empreendedora” do filho rico do zelador, volta a crescer. O grande número de mortos cria a necessidade de caixões e a produção e comercialização destes volta a fazer crescer a atividade econômica (ponto para os neo-liberais) e a riqueza do filho do zelador volta a aumentar com a fabricação e venda de caixões, que são subsidiados pelo governo e/ou desviados da produção estatal que deveria ser distribuída gratuitamente. O consumo tão sonhado dos defuntos é perpetuado nos próprios caixões, com desenhos de aparelhos de som, carros, roupas e outros bens, gravados nas urnas, a fim de que o morto possa “usufruir” deles na outra vida.

A produção acelerada de caixões, por sua vez, destrói as árvores da região e compromete o meio ambiente. O zelador da escola, que é, penso eu, um símbolo da sensatez de valores comunitários antigos (não necessariamente comunistas, diga-se de passagem), cansado de lutar, toma uma atitude radical. Mata seu próprio filho empreendedor para “extirpar o mal pela raiz”. Mas o mundo já mudou. Pessoas, animais e árvores já se foram, assim como a velha comunidade. Um novo mundo está surgindo, mas qual?

Não sei se houve de fato uma epidemia de AIDS desta monta na China, mas tenha ou não havido, o que fica é um retrato da modernização chinesa e da destruição da economia anterior e da comunidade original, dos laços familiares e comunitários que são anteriores ao regime comunista. A que sangue vendido o autor se refere? Ao real ou àquele “vendido” no trabalho das novas fábricas chinesas com suas condições de trabalho desgastantes?

O livro é um retrato genial, trágico, humano e sem esperança, da destruição de uma sociedade e da construção de outra, individualista e insustentável. Isto não está, também, com variações, é claro, acontecendo no mundo todo?

Palavras chave: Ficção, drama, China, capitalismo, neoliberalismo, AIDS, comunidade.

Avaliação: excelente.

O Sonho da Aldeia Ding

De Yan Lianke. Ed. Record. 2010

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