A volta da ditadura e o silêncio de nossos pais e avós. Por Beatriz Vicentini

Posted on 31 de março de 2014 por

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Por que tão poucos se importam? Ou por que já se tornou tão comum se ouvir falar sobre os bons tempos da ditadura ou que seria bom que ela voltasse?
Há quase 20 anos pesquiso a ditadura militar no Brasil. Desde o final dos anos 1990, quando os arquivos do DEOPS-SP foram abertos à consulta pública, nunca deixei de acumular documentos, buscar publicações esgotadas, tentar ouvir os que a tinham vivido pessoalmente. Nos últimos seis meses, envolvida em organizar um livro sobre Piracicaba e o golpe militar – que deverá ser editado por seus autores, depois da desistência sem explicações do Instituto Histórico e Geográfico, de quem éramos parceiros – convivi praticamente todos os dias com o tema, em busca de fotos, de confirmação de depoimentos, do surgimento de novos fatos. E com jovens que precisavam desenvolver trabalhos sobre os 50 anos do golpe.
E, para mim, esse coro ela volta da ditadura, que por vezes envolve também os mais jovens, sem que eles sequer tenham noção exata do que repetem, tem a ver com o silêncio de nossos pais e avós. Ou daquele amigo de nossos pais que foi exilado, ou que esteve preso e de cuja vida ele mesmo pouco fala. Um silêncio que a maioria respeita. Um silêncio que vem criando novas gerações capazes de imaginar o que a ditadura nunca foi.
Se quem a viveu, se quem a conheceu, se quem contra ela lutou – e carrega consigo as marcas da dor, da tortura, da prisão, do medo – dela não fala, como os mais jovens poderão imaginar o que foi viver aqueles tempos, para além dos trabalhos acadêmicos, dos debates dos partidos políticos, das rasas coberturas que os meios de comunicação vieram dando ao 31 de março nos últimos anos? Nada nos envolve mais do que histórias daqueles que conhecemos, com quem já temos uma ligação emocional. Saber que o vizinho, o amigo, o professor do pai, o tio distante, pessoalmente tiveram sua história truncada pela violência da repressão, pela força da legislação que permitia cassar mandatos ou afastar professores e alunos das escolas, que levava ao exílio para se fugir da tortura, é a primeira aproximação real entre as novas gerações e a consciência de que a ditadura nada teve de bonito, de fácil, de tranquilizador ao longo dos anos em que definiu parte do comportamento diário dos brasileiros.
Para jovens acostumados a redes sociais, celulares e um tempo onde todos dizem o que querem sobre quem querem é preciso mostrar que o tempo da ditadura foi o também – o que talvez lhes pareça difícil de entender na prática – um tempo de censura, onde as pessoas até escolhiam com quem e sobre o que conversar, que os jornais tinham listas de assuntos e pessoas que não podiam noticiar, que se era observado e vigiado pela repressão até mesmo dentro da igreja ou a cada aula que assistia. E que muitas vezes casas eram invadidas por causa de denúncias anônimas simplesmente pelos livros que se possuía.
Mas as histórias que se ouve e que se contam parecem sempre tão distantes, como se elas tivessem acontecido apenas com os que realmente militavam em partidos clandestinos, na luta armada contra o regime, nas capitais, nas maiores universidades do país. Ah! pais, avós, amigos dos tios, conhecidos e vizinhos da esquina onde você mora e que permaneceram quietos. É por causa deste silêncio que a ideia saudosista da ditadura também anda ganhando as ruas. Afinal, suas histórias – que existem, que têm detalhes tristes, que no fundo explicitam a “banalidade do mal”, que vão ficando esquecidas com o passar do tempo – são a melhor forma de fazer os mais jovens entenderem porque é preciso tanto lutar pela democracia.

Beatriz Vicentini (que também assinou livros e artigos como Beatriz Elias) – Organizadora do livro “Piracicaba 1964, o golpe militar no interior – jornalista, menções honrosas do Prêmio Vladimir Herzog (1998 e 2013), menção honrosa do Prêmio Esso (1998), vários livros publicados, assessora de imprensa da Universidade Metodista de Piracicaba entre 1979 e 2006.