Dividindo a carga. Por Luis Fernando Amstalden

Posted on 24 de setembro de 2018 por

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Foi hoje, não faz muito tempo. Era perto de duas da tarde, em um calor de 35 graus. Eu subia, a pé, uma ladeira procurando as sombras escassas e, logo, vi a minha frente um pequeno congestionamento. Alguns carros buzinavam, outros aceleravam impacientes. Mais adiante a causa. Um homem magro, jovem ainda, puxava um carrinho de sucata abarrotado. Era pesado e não havia espaço na calçada, assim ele só podia andar pelo meio da rua, atrapalhando cos carros.
Não foi minha a iniciativa., mas de um homem mais velho na outra calçada que saiu à rua e começou a empurrar o carrinho, ajudando o catador.
Era a única coisa a fazer, era o correto, o solidário, e eu fui ajudar. Juntos, nós três levamos aquela carroça atulhada de papéis, latas, papelão e ouros materiais até o fim da ladeira, quando nos despedimos, com pouco fôlego e poucas palavras. Eu segui adiante, o sucateiro virou uma rua e o idoso outro.
O peso , a subida e o calor me exauriram. Eu estava ensopado no final da ladeira, e com os pés doendo. Mas… mas eu havia almoçado bem e agora estava livre do peso. O sucateiro não estava livre, mas não se se havia comido e nem o que havia comido, caso tenha almoçado. Tampouco sei para onde ele ia e quanto ganharia com aquela carga toda. Pouco, imagino, bem pouco.
E no entanto, para muita gente, aquele catador era e é apenas um entrave. Alguém que atrapalha o trânsito. Alguém que não tem mérito, caso contrário, pensam, não estaria ali, catando sucata.
Para muitos, talvez ele não seja inteligente. Talvez vá usar o dinheiro para beber ou consumir drogas. Talvez não tenha tido vontade de estudar.
Para outros ainda, ele não saberá usar o dinheiro da venda e, talvez o pior, há aqueles que acreditam que ele estava na ladeira e está na pobreza, por que não “tem fé” em um “deus” que distribui dinheiro à quem proclama “crer e estar salvo”.
Seja qual for a explicação, a maioria das pessoas acredita que aquele homem está onde deve estar ou onde consegue estar.
E, lá estando, ele é um entrave. Alguém que, se doente, consumirá recursos do SUS. Que se tiver filhos, onerará o Estado, que deve ser “mínimo” demandando serviços públicos, escolas etc.
Há ainda aqueles que dirão que, se aquele homem negociar direito a sucata e poupar, um dia será um “empreendedor” de sucesso. Claro, se ele não conseguir, será por falta de mérito, a mesma falta que cito acima.
Mas o fato é que ninguém, nem eu mesmo, conhece a história do sucateiro. Ninguém que lê essas palavras sabe de onde ele veio e como se tornou catador. Eu e o idoso não tínhamos fôlego para perguntar nem o nome dele e tenho a impressão, de que ele tampouco tinha para responder. Então não sabemos. Assim como não sabemos o que acontecerá com ele no futuro, quando a saúde lhe deixar e ele não puder carregar sozinho a carga que mal conseguiu levar ao topo da ladeira com nossa ajuda. Não sabemos o que acontecerá com ele (e nem conosco), quando o Estado “minimizado” não tiver dinheiro para socorrê-lo na doença ou para educar seus filhos.
As únicas coisas que eu sei, é que aquele homem estava lutando, estava tentando ganhar a vida, catando os restos do nosso consumo. O que eu sei, é que ele provavelmente não ganhou muito com aquilo, talvez só o suficiente para as despesas de hoje e, amanhã, terá que recomeçar, subindo ladeiras sob o sol, papel a papel, lata a lata.
O que eu sei, é que as buzinas, ao menos essas, pararam quando um idoso e um homem de meia idade, não andrajosos e brancos, começaram a empurrar o carrinho.
O que eu sei é que não é fácil julgar os outros sem compartilhar, ao menos uma vez, sua carga.
O que eu sei, é que aquele carrinho estava muito pesado e sol, muito quente…

Dedicado ao sucateiro e o idoso com quem dividi por algumas quadras, o peso da vida compartilhada.
Luis Fernando Amstalden

Posted in: Crônicas/Contos