Dia destes, em visita a uma boa empresa no interior de São Paulo, por coincidência era hora de almoço. Todas as máquinas estavam paradas, ao fundo só se ouvia um ruído de ar comprimido vazando em alguma mangueira, ou em um conector de engate rápido. O gentil empresário que me acompanhava neste “plant tour” (visita às instalações fabris) exclamou: Como é triste ver as máquinas paradas! Concordei e me lembrei neste instante de muitos fatos onde presenciei máquinas paradas por “n” circunstâncias, inclusive por greves, por acidentes, ou pela normalidade dos feriados e horários sem turnos de trabalho. Um empresário, ao perceber as máquinas paradas, sempre pensa na última linha do balanço, ”money” (dinheiro), em outras palavras, no resultado operacional da companhia. Eu já vejo também o lado nostálgico, sem nunca deixar de considerar também o lado material, o objetivo número “um” da empresa que é, invariavelmente, o resultado. Mas sem mais delongas, considerando todo esse aspecto administrativo, há um fato que me marcou muito, que é o causo (caso) do tornão fabricado pela antiga JONES & LAMSON, originário dos EEUU. Trata-se da história de uma máquina que um dia deixou de funcionar. Eis o dito caso:
Na época eu era um gerentão de uma grande empresa, com vários departamentos, de usinagem, montagem, soldas e outros que tais. Foi um tempo em que eu exercia funções bem distintas das que exerço hoje como consultor. Minha sala estava em um mezanino, bem em cima de um departamento de usinagem de eixos varões localizadores. Este setor tinha muitos tornos trabalhando direto, em três turnos, e dentre eles o grandão que era um torno revolver, convencional com um antigo aparelho de barras, e que fabricava alguns modelos bem parecidos de pinos que serviam de eixos para engrenagens chamadas de “louca da ré”. Um nome bem curioso para quem não seja familiar aos jargões da indústria mecânica.
No primeiro turno, que começava às 05:00 da manhã, havia um operador, já experiente, não tão jovem, mais laborioso e calmo, com o qual eu tinha mais contato (infelizmente o tempo apagou seu nome de minha memória sem dó). Esse era um apaixonado pela tal máquina e como era zeloso com o seu tornão, pois o mantinha sempre brilhante, lubrificado e fazia questão de ir colhendo os cavacos evitando que acumulassem.
O tornão trabalhava com a matéria prima em forma de barras longas, de 4 metros, dispostas no aparelho porta barras, sendo que uma delas passava por dentro do eixo árvore para se apresentar ao torneamento. Com o torno girando em baixa rotação, pois nem daria para ser mais rápido, por conta do próprio desbalanceamento da barra, a operação propagava um som bonito como um sino em constante tintilar, porém, ao invés do badalo no bronze, a melodia era gerada pelo bater de aço com aço ou com o ferro fundido da estrutura.
Dia e noite eu ouvia e podia acompanhar a produção pelo som. Quando o torno parava, na maioria das vezes, era por problemas de manutenção ou então por falta de planejamento que, por alguma razão, deixava faltar material para o trabalho.
Este torno chegou junto praticamente com a fundação da empresa nos idos e prósperos anos 50, e já era usado. Vejam, quantos operadores passaram por ele, quantas oportunidades de trabalho estavam naquele posto, naquela máquina. Operadores ganharam seu sustento colocando a peça na placa, torneando, medindo, corrigindo, preparando, retirando as peças e colocando em caixas para a operação seguinte. Por ele, o tornão J&L, muita gente teve a oportunidade de se manter, casar, comprar uma casa, estudar os filhos, viajar, poupar, tiveram chance de evoluir para cargos melhores, enfim, viver uma vida com o sustento proveniente daquele trabalho. Cada tilintar era como se fosse de uma moeda sendo colocada no cofrinho do dia a dia, de cada um que estava ali à sua frente, interagindo mutuamente; um com a força de corte, o outro com a força do músculo; um valendo-se do pensamento nascido no cérebro e o outro do movimento gerado por fusos e barramentos. O operador, do qual não me lembro o nome, muitas vezes me disse que, graças aos serviços executados naquela máquina havia formado os filhos, construído a casa própria e, ainda, se mantinha dignamente.
Os tornos convencionais carecem do homem para operá-lo, pois ele é só força e não tem computador ou CNC que pense por ele e o dirija. Ele precisa ser dirigido. Não é como nos tempos de São Paulo quatrocentão, dos idos de 1954, onde as propagandas pregavam “NON DUCOR, DUCO”, ou seja, “não sou conduzido, conduzo”. Este é o aspecto que muitos profissionais não vêm, os desdobramentos que se originam de um simples posto de trabalho, os aspectos que tangem a vida, o dia a dia, as alegrias, as frustrações, as necessidades e tristezas de cada pai de família. Quantas vezes o operador tem que entrar no palco do trabalho, carregado de pensamentos e tristezas, vestir “la giubba” (a roupa de trabalho, paletó em Italiano) porque o trabalho “must go on”; ou, como diria o poeta, o show tem que continuar; pois é assim que vejo toda essa metafísica, que se origina da interação de cada pessoa, cada profissional postado em frente de cada máquina. Eu, às vezes, em meus devaneios, chegava a imaginar que, talvez, a máquina pressentisse tal situação, como se fosse um ser vivo, e procurava entoar um ruído mais alegrinho para estimular e encorajar seu próprio operador. Seguindo nessa linha, imaginava como ele, o tornão, deveria se sentir mal, caso ocorresse algum acidente ao operador ou a ele mesmo, por conta de algum movimento mecânico mal sucedido que pudesse vir a interromper a suave melodia.
Por que estou falando deste torno especificamente, visto que por trás de toda a máquina existem histórias semelhantes? Lembre-se de como comecei esse relato. Falava sobre máquinas paradas. Então, por quê? Passado um tempo nesta minha gestão, e devido a uma oportunidade percebida pela alta direção daquela empresa, o setor foi terceirizado. Todo o trabalho foi para o novo empresário, que iria a partir de então fazer todas as peças deste departamento e entregar segundo as rotinas da já proliferada técnica do “just in time” (entregas na hora exata da necessidade, seguindo cronogramas flutuantes, acompanhando a volatilidade das demandas). Tudo muito bonito, pois, de novo, isso iria afetar positivamente a ultima linha do demonstrativo financeiro. A partir de então, nunca mais vi o senhor operador. Tudo foi feito abruptamente, sem que se tivesse, se quer, uma chance para alguma alternativa de realocação de recursos, algum tipo de “overlapping” que pudesse poupar a nostalgia que ora me invade.
Não vou discutir isso, e nem o quero. Todavia, o senhor operador teve de continuar sua vida sem o auxílio musicado do velho J&L. E ele, o velho J&L, por sua vez, em face dos estudos feitos pelo novo empresário, foi silenciado. Ele parou. Suas engrenagens, o aparelho de barras, o motor, a mesa, a espera porta ferramentas, o castelo porta ferramenta, todos em fim silenciaram para sempre.
Um dia, nós em companhia de outros profissionais da empresa, fomos verificar em um depósito de um grande leiloeiro de máquinas da região, se existia uma máquina sei lá para que, da qual nós estávamos precisando. É um choque, para mim que não raciocino só em termos de dinheiro, que não vejo o mundo apenas pela perspectiva monetária, ver tantas máquinas desativadas, clamando por seu passado, pela sua anterior interação com humanos, gritando silenciosamente para voltar a rodar, vibrar, cortar, soldar, pintar, dobrar. Creiam, é um choque!
Naquele amontoado de máquinas sem vida, nem ruído de ar comprimido vazando tinha. Nada, só poeira e silêncio. Todas elas mortas para dar vazão ao prodigioso progresso.
Como é triste ver máquinas paradas. De repente, vi me envolto em teias de aranha, poeira, sucatas ao redor, e para meu espanto, lá estava ele o velho amigo, o querido TORNÃO J&L. Meu Deus! Me emocionei! Contudo, ninguém percebeu minha furtiva lágrima e, se viu, imaginou ser apenas um cisco no olho. Se eu pudesse, eu o abraçaria, e ficaria ali horas ouvindo suas histórias. Eu fui embora e ele ficou no seu silêncio. Isso me acompanha e vai me acompanhar sempre. Adeus velho J&L.
Aryoldo Machado. É engenheiro mecânico aposentado e consultor de empresas
julianamachadoamstalden
17 de junho de 2012
Meu pai quem escreveu…pense em um orgulho…!!!!!
monica fracassi
17 de junho de 2012
Lindo texto!!
Walter Chaves
17 de junho de 2012
Bela historia.
Parabéns!
malu
17 de junho de 2012
Lindo texto, Ju!!!!
Maria Virgínia da Penha Rizzo takeyama
18 de junho de 2012
FIQUEI ORGULHOSA DO MEU PRIMO E IMAGINEI AS CENAS DESCRITAS POR ELE VIVIDAS PELO MEU FILHO, ENGENHEIRO E MUITO HUMANO TB.PARABÉNS, ARIOLDO.
Aryoldo Machado
29 de junho de 2012
Maria Virgínia. Grato pelas suas palavras. Desejo que seu filho tenha todo o sucesso nesta carreira de engenheiro. Tem que conciliar sempre a técnica com o lado humano. Abraços e venha nos visitar um dia destes.
Natália Regno
19 de junho de 2012
Blog maravilhoso… Lindo… Já add nos meus favoritos… Conversei hoje (19 de junho de 2012) com sua esposa…Simpatica…
Parabéns pelo blog…
Beijokas
Natália
Anônimo
27 de junho de 2012
Meu caro amigo inesquecível ARYOLDO
Lindo texto! Adorei! Sentí saudades. Me emocio
nei!Um grande abraço. Do tamanho da nossa amizade. Do infinito respeito que tenho por você!
Gonçalves
Aryoldo Machado
1 de julho de 2012
Amigo Engenheiro Gonçalves. Agradeço muito suas palavras que percebo vem de longe desde que começamos a trabalhar juntos e conviver. Esta história, é real, e como você que já viveu o ambiente de uma fábrica com ênfase à usinagem dos metais sabe o valor de cada máquina, para a produção e para quem trabalha nela. Quantas histórias semelhantes à essa podemos com nossa vivência relatar. Enfim nós vivemos muito das nossas recordações. Para completar veja o comentário de um amigo meu, formado comigo lá em S.Carlos no ano de 1970, amigo esse que vive hoje um mundo mais filosófico. É interessante o comentário do Mariano de Mariano, como ele diz, Mariano ao quadrado. Veja:
Eu respondi diretamente ao Aryoldo, que na verdade a história do Torno é a nossa história aqui nessa Terra de Homens. O significado de nossas vidas é o mesmo. Chegará a hora e o momento de nos tornarmos um Torno Velho e iremos , defato, para o ferro velho, como alguns amigos nossos que foram ainda com o Torno em execução. O que o Aryoldo escreveu conscientemente, na verdade foi o inconsciente dele que se viu projetado naquele torno que não tinha mais serventia, como nós que aos poucos vamos deixando aquelas grandes responsabilidade que tínhamos no passado seja na engenharia, seja na nossa vida privada, e passamos a cuidar de coisas mais superficiais, que não nos trazem mais aborrecimentos. É assim nossas vidas.
abraços
Eng. Gonçalves, valeu!
benedito istorti
23 de julho de 2012
Senhor Aryoldo , esta historia e como um pai que cria seus filhos , da todo o estudo possivel
dentro das condiçoes financeiras possiveis e um dia os filhos vai cuidar da dua vida e os pais ficam somente com as historias dos tempos que se passaram ,e com saudade dos tempos que ja se foram,parabens pela historia ( istorti )
Luiz Carlos Benjamim
15 de julho de 2013
Solicito seu contato, sobre mecanismo de sincronismo é sua patente??
aguardo
Benjamim
Aryoldo Machado
15 de julho de 2013
Patente
(11) Nº do Pedido: PI9605360-7 B1
(22) Data do Depósito: 30/10/1996
(51) Classificação: F16H 57/023
F16H 57/023
________________________________________
(54) Título: MECANISMO DE SINCRONIZAÇÃO DE ENGRENAGENS
(57) Resumo: “MECANISMO DE SINCRONIZAÇÃO DE ENGRENAGENS”. Mecanismo de sincronização de engrenagens controlado e comandado por atuadores (101, 102) eletromagnéticos ou por um sistema eletromecânico assistido e governado por uma central de processamento eletrônico que, de forma controlada, ajusta a rotação do eixo piloto (1) de acordo com a rotação da engrenagem a ser engatada (3, 51, 52, 53, 54, 57 figura 1, ou 11, 12, 13, 14, 15, 16 – figura 2) ajustando-os com precisão e rapidez, permitindo o engate suave entre a engrenagem e o eixo, sendo que este mecanismo constitui parte de um sistema de mudança de marchas ou de engrenamento de uma caixa de transmissão automobilística ou de máquinas.
(73) Nome do Titular: Eaton Ltda. (BR/SP)
(72) Nome do Inventor: ARYOLDO MACHADO
(74) Nome do Procurador: Momsen, Leonardos & Cia.
Aryoldo Machado
15 de julho de 2013
Estes dados desta patente que fiz quando funcionário da EATON constam dos arquivos do INPI.
Proprietário da patente EATON LTDA.
Aryoldo Machado é o pesquisador e o inventor.
Leandro Kimura
16 de outubro de 2013
Muito legal, chega a ser até estranho saber que o nosso colega de trabalho tem um pensamento tão diferente sobre o assunto, quando normalmente a nossa visão mais simplista é investimento, depreciação, produção e substituição. Parabéns Aryoldo!!!
Aryoldo Machado
18 de outubro de 2013
Obrigado pelas palavras Leandro Kimura. Você tem sensibilidade e percebeu o conteúdo do texto. Eu tento dar valor a tudo aquilo que vivo, profissionalmente, pessoalmente. Tento ver beleza e extrair o máximo do tempo que passa. OBRIGADO. Valorizo muito este convivio que estamos tendo.
Wagner Avelar
18 de fevereiro de 2014
Que legal Aryoldo, muito bem escrito e com sentimentos, você é o cara. Parabéns…
João
23 de abril de 2014
Na época do Santos Dumont havia quem fizesse looping com precários aviõezinhos….por diversão….Hoje em dia vemos marcha dos pamonhas em certas universidades de certos países de “certos continentes sulamericanos”….Gostei do texto !!!…