Ossos do ofício – Profissão: Farmacêutica. Por Juliana Machado Amstalden

Posted on 4 de julho de 2012 por

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Todo ofício tem seus “ossos”.  O de farmacêutica tem muitos. Dar injeção em marmanjo que desmaia, por exemplo. O cara entra lá, maior machão, começa a tremer antes e despenca na hora da agulhada. Tem também os clientes bravos ou sem educação mesmo  porque não podem comprar alguns  remédios sem receita (geralmente são os calmantes e os medicamentos para depressão, acho que  dá para entender o motivo da braveza e da má educação) , bêbados  querendo algo para o fígado (domingo é dia nacional dos fígados ‘estrupiados’) , aqueles que pedem remédio de hemorroidas para o irmão, a mulher, o primo sendo que sabemos que é para ele mesmo (sempre muito óbvio), o “osso duro de roer” que pede desconto até em um band aid (e quando eu falo um é um mesmo e não é maldade minha não, o “osso duro de roer” ostenta chaveiros com chaves de carrões e bolsas da Louis Vuitton original) e muitos outros tipos de indivíduos/clientes/criaturas (se eu for citar cada ”tipo” de cliente, passaríamos horas “agradáveis”  identificando as figuras que frequentam uma farmácia).

E tem os que vão “passear”.  Em geral naqueles dias que foram movimentados , ninguém parou um segundo e a drogaria está quase fechando. Mais ou menos assim, ó:

 

Sábado, 19 de junho de 2010 – 22 horas e 56 minutos.

Todas as portas já fechadas, a principal semi-aberta pois havia o ÚLTIMO cliente pagando sua conta…

Ouço barulho de carro estacionando, vejo a luz do farol refletindo para dentro da loja, ouço o freio de mão sendo puxado, as portas se abrindo e se fechando… Suspiro e penso: ” mas não é possível, meu Deus, espero que pelo menos seja uma emergência.” Não, não,  NÃO  era uma emergência…

Renato, o gerente,   conferindo o dinheiro do caixa ao lado, Thamires  no outro caixa atendendo o suposto ÚLTIMO cliente da noite e Maurício…sei lá do Maurício. Olhei para os lados e me vi sozinha no balcão… “Ai trevas, sobrou para mim…”

Tenso. Muito tenso.

– Mocinha? (quem eu? Odeio que me chamem de “mocinha”!  Odeio!!!!!!!)

– Posso ajudá-la??? (minha cara  de condenada entregou todo meu cansaço mas consigo esboçar um riso meio sem graça mas era um riso típico de “estou aqui para atendê-los “zuper” bem. Aquela altura da noite e depois de quase oito horas em pé era o máximo que conseguiria fazer – sinceramente minha cara era de poucos amigos e “peloamordedeussejamomaisbrevepossível”).

– Tem vitamina C?

– Tenho.

– Quanto tá? Qual você tem?

Entre esse pequeno diálogo e um suspiro meu, o marido da senhora senta ao lado dela no balcão e começa a folhear o encarte de ofertas de junho displicentemente e sem pressa. Achei que ele fosse virar para mim e pedir para lhe servir uma cerveja e uma porção de batata frita. Juro!

– Senhora, tenho a marca Xebion que custa R$ 7,99 e tenho Redoquizon Zinco que custa R$ 9,99… Qual a senhora quer??? (olho para o relógio e já são 23: 00 – mas não é possível!!!)

– Hummmmmmmmmmmmmmm… qual a diferença de uma para outra?

– Além do preço? Uma tem zinco a outra não. (afinal o que há  para explicar em termos da diferença de uma da outra? A não ser que eu quisesse “empurrar” algo e isso eu não faço – fique claro a todos: nosso horário de funcionamento é até as 23:00 horas e ponto!)…

– Ah tá! Amorrrrrrrrrrrrrrrrrrr, qual que eu levo?(leia com sotaque do interiorrrrrrrr)

– Qualquer uma.

– Mocinha, me dá a de R$ 7,99. (não me chame de mocinha… **&¨¨%#$@@)*&¨%$, ok?)

– Tá. Mais alguma coisa?? (“peloamordedeus”, não queira! Preciso ir embora, ta todo mundo cansado, a loja já está fechada…já está bom, né? Nessa, o Felipe meu gerente me olha e começa a fingir um choro desesperado…e nessa, eu tenho que me segurar para não chorar de verdade ou cair numa gargalhada descontrolada).

– Mulher grávida pode tomar vitamina C???? (ai Jesus, a santa da cliente ta grávida???? – vou morrer agora!!!)

– Senhora, de quantos meses???

– De quatro meses…

O marido, alheio a tudo (inclusive alheio ao fechamento da loja) continua a folhear a revista e resmungar (estaria ele achando que a batatinha e a cerveja estavam  demorando a ser servida???)

– Senhora (queridaaaa), quatro meses o feto ainda está em formação. Qualquer medicamento, inclusive vitamina C só pode ser utilizado mediante autorização do seu médico. (aquela hora da noite ela jamais poderia encontrar o médico, logo, poderia desistir da compra e ir embora e voltar no outro dia…ledo engano de Juliana…)

– Amor, liga para sua irmã e pergunta para ela se eu posso tomar vitamina C?

– Heim?

– Liga para sua irmã e pergunta para ela se eu posso tomar vitamina C (essa frase ela já disse um pouco alterada…afinal, ela está gravidinha e o marido não está sendo tão atencioso com o problema dela e o da vitamina C, não é?)

Pausa para ligação.

A irmã do fulano NÃO ATENDE. (óbvio que não…realiza!!! hello!!! Sábado a noite, mais de onze da noite, provavelmente a irmã médica ou está dormindo ou, na melhor das hipóteses está “namorando” com o marido dela, ou vendo um DVD, tomando um vinho, no bar com os amigos tomando uns chopinhos…sei lá…está fazendo coisas normais para um sábado a noite. Saco!)

Mas ok! Juliana, respira e fundo e continua com sua cara de paisagem.

– Amorrrrrrrr , vou ligar na sua mãe, quem sabe ela está lá…ai amorrrr, não está tarde não??? (está sim senhora, está tarde, nós precisamos ir embora, nós estamos com sono…não é má vontade não mas já trabalhamos o suficiente hoje, então por gentileza: AGILIZA essa compra da vitamina C, pleaseeeee!)

– Dona Fulana, a Beltrana (médica) está aí? Ah não! Onde será que ela está então? Será que foi comer uma pizza??? Hummmmm, tá bom então, amanhã eu falo com ela…tá…um beijo…Não, não está tudo bem comigo…é que eu estou aqui na farmácia (que já fechou – mero detalhe) e queria saber se eu posso tomar vitamina C. Amanhã eu falo com ela. Beijos. Tchau. (afinal…porque você não foi comer uma pizza com sua cunhada médica? Eu me pergunto em pensamentos sedentos por descanso…sim, meus pensamentos já estavam bem cansados…)

Continuo com a minha cara de paisagem (cara de paisagem = mais alguma coisa? Podem ir agora, por favor? Precisamos fechar a loja e ir dormir, ok?)

– Mocinha…vou levar a mais barata, amanhã eu resolvo o que eu faço (ufa!!!! Meus neurônios começam a dedilhar o “samba de ir embora descansar”…)

– Amorrrrrrrrrrrrr, você vai querer alguma coisa? (ah não! Jesus, Maria e José, minha Santíssima Trindade…NÓS NÃO MERECEMOS ISSO! Só falta ele pedir a tal da cervejinha…)

O marido, com a maior calma deste mundo, para de folhear  a revista de ofertas, olha para mim com a maior cara de “é comigo agora?” e me pergunta que remédio é bom para desentupir o nariz… (meu Deus, existem infinitos medicamentos para desentupir o nariz…INFINITOS! Mas por que raios este marido não me perguntou enquanto a digníssima esposa dele caçava insanamente a cunhada médica?????? Mas enfim, “bora” ser gentil, né??????????)

– Senhor (meu querido) temos: a, b, c, d, e, f, g, h, i…..O senhor já usou algum???

– Me dá um Neochoro então.

– Está em falta, senhor.

– Qual é parecido?

– Xorine. (juro gente, isso já era umas 23:19 e o meu atendimento começou  a ficar tenso…e olha que eu tenho a maior paciência do mundo em atender…sou quase uma “monja” do atendimento farmacêutico mas a aquela hora eu estava mais para uma louca, louca para ir para casa…será que eu devo avisá-los que eu ainda tenho que pegar estrada, percorrer cerca de 40 quilômetros para chegar em casa?)

Enfim, ele não quis o Xorine  porque achou caro (puff, morri), acabou levando soro fisiológico mesmo. Depois disso tudo, viram as costas e nem um “tchau, mocinha. Obrigada!” eu ganhei…juro que nem ia me importar de ser chamada de mocinha mas pelo menos um agradecimento  eu merecia mas contudo, entretanto…..

Pronto, ele levantou do banquinho e não pediu a cerveja (ufa!). Juntos, se encaminharam para o caixa mas antes deram uma passadinha na sessão de xampus (para desespero coletivo, menos o deles, claro) e vagarosamente chegaram finalmente ao caixa (UHUUUUUUUU)…

Ok. Ficamos felizes por uma fração de segundos porque os dois empacaram literalmente no caixa e começaram a escolher xampu infantil (“maledetas” exposições de produtos na fila do caixa)…

Escolheram com muita cautela o xampu para o filhote que está chegando…muita cautela e cuidado mesmo. Nesse momento, a pequena equipe da loja desencanou. O Renato e a Thatá continuaram no caixa esperando o casal pagar a compra, o Maurício se escorou na porta principal (ele ficou lá o tempo todo como um sentinela para que nenhum desavisado entrasse na drogaria e também para fechar rapidamente o restante da porta assim que o casal mais fofo do mundo resolvesse ir embora) e eu, já fui tirando o jaleco, catando meus cacarecos e entre risinhos histéricos me sento na frente do gerente com cara de “socorro me tira daqui” e espero…fazer o que???

Enfim, claro que esta Via Crucis tinha que terminar e terminou! Foram os 30 minutos mais longos de nossas vidas…podem acreditar…!!! Juro, nós quatro não sabíamos se chorávamos ou se gargalhávamos até perder o ar…fizemos as duas coisas. Renato resmungando o tempo todo: “se isto está acontecendo é porque a gente merece…Deus, eu devo ter sido muito ruim em outras vidas. Por que??? Eu mereço, eu só posso merecer, eu mereço…A gente merece tudo isso, a gente se merecesse e blábláblábláblábláblá…” . Acho que ele “declamou” o verbo “merecer” em todas as suas conjugações possíveis. Mas eu nem estava ouvindo porque eu também já  estava juntando meus cacarecos para zarpar o mais rápido possível dali.

Finalmente pagaram  e foram embora. Finalmente eu pude gritar: UHUUUUUUUUUUUU!!!!! Assim que eles saíram, parecia que o alarme de incêndio havia sido acionado pois o Renato, o gerente fechou o caixa em tempo recorde, o Maurício também bateu o recorde de fechamento de porta de drogaria, a Thamires trocou de roupa em 3 segundos e assim, cansados e quase surtados encerramos nosso lindo dia de trabalho.

Eu? Depois dessa prova de paciência, entrei no meu carro rapidinho. Fui dirigindo com o maior cuidado na estrada (sabadão, estrada cheia de carros…pessoas de toda região indo para a balada – lembram? É sábado a noite!!!) , cheguei em casa morta mas todo cansaço, toda impaciência, toda intolerância ficou do lado de fora a partir do momento que abri a porta e encontrei o meu amor e o aconchego da minha casa. Conversamos, namoramos, fomos dormir juntinhos…Enfim, tudo de bom!!!! (Ops…não seria isso que o casal da vitamina C deveria estar fazendo esta noite??? Ah, deixa para lá…já passou, foi engraçado!)…

 

Juliana Machado Amstalden é Farmacêutica

PS: Este texto é uma peça de ficção. Qualquer semelhança é mera coincidência.