Jovem e esforçada, começou a trabalhar naquela empresa nos cargos mais baixos e foi progredindo. Casou-se e quer ser mãe. Mas conforme sua vida profissional se desenvolvia, faltava-lhe cada vez mais o tempo para se dedicar, ainda que uma parte do dia, a uma criança. E faltava também “fôlego”, porque embora jovem, seu trabalho consumia. Horas a mais (sem pagamento extra, afinal tinha “cargo de confiança”), metas a cumprir, pressão dos gerentes regionais, da matriz (é uma grande empresa de varejo), falta de mercadorias irritando os clientes e os erros cada vez mais frequentes de funcionários insatisfeitos. Os níveis de estresse altos se propagam. Todos acabam por se contaminar, desde os funcionários até os clientes e as famílias dos funcionários.
Há poucos meses veio a “boa notícia”. A moça seria promovida a gerencia sênior. Salário um pouco melhor e responsabilidades muito maiores. Agora chefiaria outra loja. Antes, porém, uma reciclagem e um treinamento mais específico em São Paulo. Dois dias intensos, com palestras, aulas e novas diretrizes. Ao final, um palestrante veio falar sobre “motivação profissional. Ocorre que lá pelas tantas o palestrante, querendo alavancar ainda mais seus ouvintes, perguntou-lhes do que eles se lembravam mais: do dia a dia estressante e problemático no trabalho ou dos bons momentos com a família? A intenção era dizer: “não se preocupem, estes momentos ruins no emprego você vai esquecer, mas as coisas boas (fora do emprego) estas ficarão”. Foi aí que ocorreu a reviravolta.
Minha amiga percebeu o óbvio. Ela não tinha mais tempo suficiente para viver as relações de família, de afeto, de amizade. E quando tinha algum, sua mente cansada e sua irritação a impediam de sair ou de curtir a companhia de outros. Tudo o que ela queria era ficar quieta em casa, tentando se recuperar do cansaço de um dia para poder enfrentar o outro. Pior, percebeu que o dinheiro não era suficiente nem para uma vida mais confortável do ponto de vista material, porque a cada conquista via-se instigada à outra dada a lógica do consumismo insano moderno. A moça percebeu que sua vida estava girando em torno do trabalho, cujos problemas ela deveria “esquecer” e pouco em torno dela, do marido, dos pais, dos amigos.
No dia seguinte, ao chegar ao trabalho, teve uma crise de choro que ninguém entendeu. Pouco depois tomou uma atitude, demitiu-se em caráter irrevogável naquele mesmo dia e às vésperas da promoção. Para muitos foi uma atitude impensada, precipitada e passional. Para mim não. Para mim foi uma atitude corajosa e sábia.
O trabalho deve nos manter, nos prover e, se possível, nos dar alguma satisfação, realização. Mas o trabalho não pode e não deve um fator de destruição de nossa vida. Se for, então significa que somos escravos, não seres humanos livres. Os antigos romanos sabiam disso, tanto que negavam aos seus escravos o atributo de “seres humanos” e referiam-se a eles como “ferramentas que falam”. A sociedade romana era brutal, mas menos hipócrita do que a nossa. Nós somos brutais, mas escondemos isso embaixo de belas palavras, de discursos que afirmam que, se você quer crescer, pode crescer. Não é bem assim. Milhares de trabalhadores no mundo todo e no Brasil, não podem crescer. Não podem porque não tem preparo, não tem tempo e acabam por não ter saúde para fazer nada mais do que se aguentar um dia após o outro. As corporações modernas são muito preocupadas com a imagem de “responsabilidade social”, mas são poucas as que realmente zelam pela qualidade de vida de seus trabalhadores. A maioria exige metas cada vez maiores, produção cada vez maior, esforços e sacrifícios cada vez mais intensos e não terão pudor de demitir os seus trabalhadores quando os ventos do mercado forem desfavoráveis.
Palestras motivacionais, na sua grande maioria, tentam passar a ideia da empresa como um time, como uma família. Isso é mentira. Empresas, como já dizia Weber, são organizações racionais voltadas para a geração de lucro, e só. Se fizerem algo pela sociedade e pelos trabalhadores o fazem por exigência legal ou até mesmo porque se forçarem demais, a mão de obra não aguenta. Mas se puderem aumentar os lucros à custa de pressões e metas absurdas, vão fazê-lo, pode apostar.
Minha amiga já está reempregada em outro posto de trabalho. É um cargo mais simples de salário mais modesto. Ela vai ganhar menos, mas vai viver mais e melhor, ainda que tenha que viver com menos. Mas tudo bem, ao final ela vai perceber que o que precisamos materialmente não é tanto assim. Já o palestrante vai continuar sua “ronda”, uma vez que existem muitas empresas com trabalhadores no limite do estresse. Faço votos que, nas palestras dele, outros percebam a sua realidade, como minha amiga percebeu.
Carla Betta
19 de julho de 2012
De quantas ilusões vivemos?
Qual é a vida real?
É a “roda viva” que o Chico tão bem expressou!
Quais são os verdadeiros valores?
O que é –de fato- prazer?
Neste nosso cotidiano de índices cada vez maiores de depressões e síndromes de pânico: quem é o –eu- de cada um de nós?
Perdemo-nos em valores materiais e nessa adoração ao normal, ao comum!
Tem que ser bonita (modelo estereotipado do belo), tem que ter filhos, tem que ter carreira em ascensão, tem que.. tem que.. tem que…
Precisamos tirar os véus que nos obinubilam para sermos felizes, escandalosamente felizes!
É o trabalho de muitas vidas.
blogdoamstalden
20 de julho de 2012
Que lembrança excelente, Carla. A música do Chico é uma boa “trilha sonora” para o artigo. Quanto a Síndrome do Pânico e Depressão, não faltam pesquisadores que afirmam haver uma grande correlação entre estas doenças e o mundo do trabalho. Abraço.
Valéria Pisauro
19 de julho de 2012
…o pior é que muitas outras Moças viram!
Renan
19 de julho de 2012
Já ouvi várias vezes este comentário de “familia”, “time”, em palestras motivacionais na empresa e também receitas de como ter sucesso na vida, só que parece mais uma forma de convencer o trabalhador a trabalhar mais, ganhando menos
Antonio Carlos Danelon
19 de julho de 2012
Uma delícia de texto. Quando a maioria das pessoas passar a respeitar a si próprias exigirão também respeito, e será o fim dessa exploração barata que promente céus e terra mais é tudo mentira. São Francico dizia: “Na verdade preciso de poucas coisas, e das poucas coisas que preciso, preciso pouco”.
blogdoamstalden
20 de julho de 2012
Obrigado pelo adjetivo ao texto, Totó. Gostei da citação de S. Francisco também. Abraço.
blogdoamstalden
20 de julho de 2012
Pode apostar, Renan. Tecnicamente seria uma forma de aumentar a mais valia do trabalho.
Ju Teófilo
20 de julho de 2012
Apóio sua amiga. Foi corajosa e sábia, como vc mesmo disse. Se todos nós pudessemos fazer algo similar talvez o respeito pelo cidadão trabalhador melhorasse. Essas palestras são simplesmente o uó. Um cara de fora (especialista sempre vem de fora, ja diria MIllor), que não conhece de fato a realidade (só o que os contratantes passaram) e boralá. Abomino qualquer palestra motivacional. Elas podem ser boas, de fato, mas a intenção nunca é para o seu melhor. O Brasil se deixa levar muito pela industria de formulas de sucesso. Qualquer tosco sabe que no Brasil, não basta querer.Mesmo sendo brilhante, isso não basta. Vejo todos nossos sistemas fingindo ser uma meritocracia (ai que sonho). Mas não são.
Apesar dos avanços da mulher no mercado de trabalho, noto que as mulheres que são “promovidas” o são muito em virtude da atitude mais servil feminina, de protestar menos, de achar que tem que dar conta de tudo….Luís, machismo, Brasil, exploração pelo medo do desemprego, a criação das pobres meninas brasileiras…. Tudo contribui para a exploração disfarçada.
Nós contribuímos para o mesmo sistema cruel. Porque vivemos num país muito desigual, porque fomos criados para o trabalho (pais da geração baby boom), mas não tivemos uma educação emocional, psicológica, filosófica…de cidadania!
Acho que a atitudes como da sua amiga, ainda mais com a inserção da geração Y no mercado (que já rola), veremos mais casos assim (que bom). Ainda mais que tal geração não aceita (e vc sabe) certas coisas. Daí eu quero ver o mercado se humanizar….ou não (:()
Excelente texto, desnecessário dizer. Quem dera todas as crianças e pessoas
pudessem entender sua profundidade…
Anônimo
26 de julho de 2012
Excelente publicacao!!! Acabo de abandonar um bom emprego, apos 13 anos de empresa e me vi em cada palavra deste texto!! Joguei tudo para o alto e por enquanto, nao me arrependo…