Raj, Jaya e Satya. Por Luis Fernando Amstalden

Posted on 21 de julho de 2012 por

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Raj ao centro. Encostada nele, Satya e a direita, Jaya. Foto de Joffre Oliveira

Uma das ideias expressas no Ramayana, épico hindu que já resenhei neste Blog, é a de que o Deus Rama (mais conhecido no Ocidente pelo nome de Krishna, uma de suas encarnações) é a face amorosa da Divindade, o espírito da compaixão divina para quem todas as criaturas são preciosas e dignas de amor. Em um dos trechos mais bonitos, Rama se concentra profundamente e alimenta todos os seres do Universo ingerindo um único grão de arroz. Naquela noite, graças ao gesto de compaixão universal de Rama, todos os seres vivos dormiram alimentados, seguros e em paz. Todos dormiram como “Reis”, “Rajás” em Sânscrito.

Para os indianos, esta compaixão divina é “Satya”, a Verdade, e através da mesma compaixão que deve ser aprendida por todos, podemos chegar a união com Deus, ao fim do sofrimento e do ciclo de reencarnações. Este estado de “Atman”, União com o Divino, é a suprema Vitória – Jaya, que todos os seres podem alcançar.

Eu não sei se existe um Deus, ou uma Compaixão Divina. Tampouco sei se existe um sentido no Universo. Penso que existe, mas não posso ter certeza e nem posso almejar saber qual é este sentido. Na verdade, eu desejo que exista a compaixão universal que os indianos pregam. Desejo que exista um sentido no Universo, desejo que exista um Deus.

A cada vez que assisto o sofrimento humano e de toda vida nesta Terra, sinto-me dividido. Um lado meu desanima, tende a acreditar que o Universo é um fenômeno aleatório e a vida um “acidente” sem sentido, que vem do nada e retorna ao nada. Outro lado meu, nutre uma secreta esperança de que, no fim de tudo, no fim de minha vida eu, assim como todos os seres, possamos encontrar a compaixão.

Já aqueles que, ao contrário, afirmam ter certeza da não existência de Deus ou de Compaixão Universal, costumam justificar sua descrença através não somente da existência constante do sofrimento da vida, mas também através da ausência de manifestações divinas. Se Deus e sua Compaixão existem, dizem, então por que não se evidenciam? Por que não vemos suas manifestações sobrenaturais?

O que posso dizer? Eu não sei… Mas tenho uma esperança. Talvez, e só talvez, o Amor Universal Divino exista na medida em que ele está em nós. Na medida em que nós somos capazes de sentir compaixão pela vida, amor pela vida, respeito por tudo o que vive. Talvez esta seja a prova da existência de um Deus, afinal. E um  Deus que se manifesta de maneiras menos sobrenaturais do que poderíamos esperar. Se manifesta de maneiras mais simples. Se manifesta através de nossas mãos. De nosso amor.

Alguém pode contra argumentar afirmando que então Ele não existe mesmo, já que a humanidade em particular é bastante cruel e pouco dada a gestos de amor desinteressado. Isto é fato. Crueldade e egoísmo parecem características mais comuns do que Amor e Compaixão. Mesmo assim elas estão aí, estão em muita gente, mais do que seria razoável se fossem apenas eventos aleatórios do caráter humano. Ou seja, se gestos de bondade desinteressada fossem apenas eventos isolados, talvez eles não fossem tantos. E são, logo talvez não sejam apenas “acidentes” num universo caótico, mas uma regra mais forte do que sua sutileza parece sugerir. Você pode afirmar que durante sua vida nunca testemunhou esta Compaixão se manifestar em você mesmo e em outras pessoas e até outros seres? Eu testemunhei e vivi, muitas vezes, talvez tantas quantas foram as vezes que vivi e presenciei o oposto, a maldade e o egoísmo. Há pouco tempo vi novamente.

Em junho passado, num dos dias em que choveu bastante e esfriou, uma faxineira em São Paulo encontrou quatro gatinhos abandonados na rua. Acuados em uma caixa, estavam prestes a serem mortos por um cão. A moça os recolheu e, sem ter ela própria um lugar, os levou para a casa onde iria trabalhar. A casa de um fotógrafo que já tinha quatro gatos. Um dos gatinhos estava machucado e  todos estavam magros e famintos. Com oito gatos, a casa de meu amigo fotógrafo ficou superlotada, mas mesmo assim ele tratou dos filhotes e resolveu ficar com um, exatamente o ferido para quem julgou ser mais difícil arrumar outro lar.

Depois publicou em uma rede social na internet a foto dos três que não poderia manter. Um machinho e duas fêmeas. Foi por aí que os conhecemos. Eu e minha mulher sempre gostamos de animais e tínhamos o desejo de “adotar” um. No entanto a decisão era sempre protelada, ora por um motivo ora por outro.  Mas ao vermos a foto dos três que buscavam um lar, a decisão foi imediata. “Adotamos” os três.

De minha parte, ao saber do abandono e da quase morte dos bichinhos, por frio, fome ou pelo ataque do cão, lembrei imediatamente das crenças indianas. Lembrei-me de Rama, para quem todos os seres são Reis, lembrei-me de como isso é a Verdade divina para a religião hindu e de como alcançar a compaixão de Deus é a Vitória. Lembrei também que a proteção de Deus talvez tenha se estendido aos animais, primeiro através da mão da moça que os recolheu. Depois pelo abrigo dado pelo meu amigo. Agora pelo lar que eu e Juliana dávamos. Talvez seja só meu desejo de ver as coisas assim, mas foi o que senti. Recolhemos, assim os três. Seus nomes? O machinho chama-se Raj, o Rei e as duas fêmeas chamam-se Satya, a Verdade e Jaya, a Vitória.

Se eu pudesse ter adotado os quatro, teria procurado um nome em sânscrito que significasse “esperança” para o último deles.

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