SE NÃO… Por Valéria Pisauro

Posted on 5 de agosto de 2012 por

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Ele surgia sem ninguém desejar.

   Se sorria, nunca vi.

   Seu rosto trazia um mapa da vida; mas, sem história ou geografia, sem idade ou saudades, muito menos poesia – impossível de contextualizar.

   Seu olhar indiferente e cabisbaixo não denunciava nem encarava, seguia inerte e fixo entre o acaso e o desejo, procurando algo, sem saber o que buscar.

   Errante andarilho… Sem passado ou presente; sem norte nem oriente; passageiro do instante; matéria flutuante; semente e colheita e só servia para assustar!

   E, conseguia!!!!

   Era o ser mais respeitado entre as crianças desobedientes de minha época, e isso me incluía. Além de ser o sensor pedagógico de minha mãe, o seu infalível educador!!!

   Carregava um saco de estopa às costas, talvez toda a bagagem de sua existência. Diziam que eram brinquedos roubados de meninos malcriados. Talvez….Não tenho certeza!

   Se ele tinha um nome, família, confesso que desconheço. Conhecia-o como o Homem do Saco, vivia só, embaixo da ponte da linha do trem.

   E, como eu o temia! Muito mais que os castigos maternos e as prova da professora de português.

   Ele era livre, estranho, maltrapido, pele clara, cabelos longos e loiros, barba sem fazer, enfim, um caminhante a esmo que, com sua simples presença, metaforizava um enorme perigo.

   Bastava a sua aparição, que eu recolhia meus brinquedos e tornava-me um anjo.

   Sua existência disputava opiniões. Alguns afirmavam que fora muito judiado na infância e que nunca havia ganhado um presente, renegou sua família e agora se vingava das crianças desobedientes, roubando-lhes seus brinquedos. Outros, que se tratava de um psicopata que atraía crianças por intermédio dos brinquedos para seu esconderijo.

   Às vezes, eu o observava escondido, mas ir até seu esconderijo nunca ousei.

   Nutria por esse incógnito uma mistura de compaixão, medo, mistério e ódio.

   Será que depois de adulto brincava como criança? Acumulava brinquedos para doá-los? Fazia por pura maldade? Correção? Violência sexual?

   Na época eu era criança para todas essas divagações e meus questionamentos sintetizavam entre o Papai Noel dos Pobres ou o Capeta vingador.

   Na verdade, a única certeza que eu tinha era que o Homem do Saco não só roubava os brinquedos, mas, também, minha infância, era como se ele fosse meu cruel Herodes, massacrando meus sonhos inocentes.

   Esse inquiridor amputava o meu livre-arbítrio, sucumbia-me a suas ordens e alegorizava a minha contraexistência, impossibilitando-me de ser o que eu realmente era ou que eu queria ser.

   O pior é que esse ser queria incriminar-me de um erro que eu não havia cometido, embutia-me uma culpa que não era minha e que eu desconhecia.

   Se não tirar notas altas…Se não obedecer a seus pais…Se brigar com suas irmãs…Se não tomar banho…Se não comer tudo…

   Confesso que rotulei o Homem do Saco como “Se Não” e tornei-me seu inimigo.

   Minha educação alicerçava-se nas escritas da Bíblia, nas lições escolares, nas ordens de minha mãe, na cinta de meu pai e na disciplina do Se Não.

   Nunca me esqueci desse desconhecido.

   Passados alguns anos, já homem feito e formado em Medicina, fui informado de que um andarilho fora morto por apedrejamento.

   Chocado com o acontecimento, dirigi-me até o local e lá, para minha surpresa, encontrei estendido sobre um madeiro com os braços abertos como se pedisse um abraço, feito cruz, um ancião e ao seu lado, reconheci dois carrinhos e uma bola que um dia foram meus.

 Valéria Pisauro é Professora de Literatura