O Livro de Dave. Resenha por Luis Fernando Amstalden

Posted on 12 de setembro de 2012 por

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Imagine um taxista em Londres, sobrecarregado de trabalho, enfrentando longas horas de trânsito caótico com seus passageiros. Este mesmo homem precisa pagar o financiamento de seu carro e o sustento de seu filho e sua esposa. Decorar os trajetos, chamados “pontos” é mais do que uma necessidade do trabalho, é uma exigência legal sem a qual ele não mantém sua licença de taxista.

Sua mulher o deixa por um homem mais rico (que aliás é um velho conhecido dela) e ele tem que dobrar a carga de trabalho para acompanhar as necessidades econômicas. Dia após dia as jornadas se alongam e sua mente vai sendo sobrecarregada.  A tensão do trabalho e do trânsito soma-se à mágoa da separação e da distância do filho, cujo nível de consumo agora ele não pode acompanhar. Busca conforto na religião, mas tudo o que consegue é ficar mais confuso. Então vem o colapso mental, o esgotamento. Alucinado e sob influência da experiência religiosa, Dave, o protagonista, escreve um livro confuso, misturando a recitação dos pontos de táxi com regras sociais e pensamentos religiosos. Uma destas regras, causada pela sua mágoa, é a separação total entre homens e mulheres que deverão dividir o tempo com seus filhos. Ainda sob o “surto”, ele manda gravar o livro em folhas de metal e enterra no jardim da casa da ex mulher, na esperança que seu filho encontre.

Muito tempo depois, vem a tragédia ecológica. Os oceanos se elevam sob o efeito estufa e a economia entra em colapso. Países desaparecem sob as águas e nos que sobram, a população regride econômica e culturalmente. A Inglaterra deixa de ser uma ilha e passa a ser um arquipélago. Nos restos da antiga civilização a humanidade vive como pode. A língua se nivela por baixo. A gíria vulgar se torna a linguagem corrente e o inglês um pouco mais organizado, passa a ser conhecido como “bibici”, uma corruptela de BBC, a rede de rádio e TV da antiga civilização.

Numa das ilhas do novo arquipélago acontece uma descoberta retumbante. O livro de metal gravado por Dave em seu surto, é encontrado e tomado ao pé da letra como livro sagrado. Surge o Livro de Dave, a nova Bíblia e a nova base de uma religião.

A partir daí surge uma nova Igreja que, no mesmo processo da Idade Média, passa a dar a sustentação a sociedade pós catástrofe que, da mesma forma, assume características feudais.

Porém mesmo lá a dúvida surge. A heresia e o questionamento das leis religiosas ocorrem de tempos em tempos e, corre a notícia, não comprovada, que um novo livro, uma reescritura do livro, feita pelo do próprio Dave agora divinizado, foi encontrada. Será real esta nova escritura?

Esta é a linha geral do Livro de Dave, do escritor inglês Wil Self e publicado aqui pela Editora Alfaguara. Para quem não está habituado a leitura, pode parecer uma obra mais difícil. Mas vencida as primeiras páginas e compreendida a estrutura do livro, que vai ao futuro e volta ao presente alternadamente, fica fascinante.

Fascinante pela sua descrição do dia a dia enlouquecedor do trânsito, das pressões da vida urbana, da situação dos trabalhadores londrinos no presente. Fascinante pela maneira como o autor imagina a “reconstrução” da civilização sobre os escombros da nossa no futuro e, acima de tudo, fascinante pela forma como ele disseca as relações entre o poder social, político, cultural e a religião. Wil Self, o autor, já foi classificado de  ser “border line”, de estar a um passo da loucura. Se for verdade, pelo menos para mim ele é um “louco” absolutamente genial que capta como ninguém as diferentes “loucuras” da humanidade.

Confira.

“O Livro de Dave”; de Wil Self; Editora Alfaguara. 2009

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