A Ausência que Seremos. Por Luis Fernando Amstalden

Posted on 29 de outubro de 2012 por

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Foto tirada logo após o assassinato de Hector Abad Gomez. A direita da foto, seu filho e autor do livro, Hector Abad

Se tivéssemos que escrever sobre nossos pais e nosso relacionamento com eles, precisaríamos de muito mais do que talento literário. Precisaríamos de um grande senso de auto crítica, de uma grande humildade e capacidade de reflexão clara sobre eles e sobre nós. Caso contrário, o mais provável é que escorregássemos para uma crítica furiosa e cheia de mágoa ou a um elogio exagerado cheio de saudades. Hector Abad, ao escrever sobre seu pai, o médico sanitarista, professor e militante pelos direitos humanos, Hector Abad Gomez, que foi assassinado pelos grupos paramilitares colombianos em 1987, consegue escapar de ambos os extremos. Ele mesmo admite que levou vinte anos para conseguir, finalmente, escrever o livro de maneira mais lúcida. E penso que ele conseguiu o tanto quanto é possível.

 

A obra, de uma sensibilidade excepcional, é um misto de auto biografia, biografia do pai, relato histórico da Colômbia e da violência política naquele país além de um exercício de reflexão sobre vida, morte, família, militância pelos direitos humanos, educação dos filhos etc.

 

Para alguém como eu, que viveu e vive ainda na expectativa de que sejamos capazes de construir uma sociedade justa e cidadã, o livro é de uma riqueza impressionante. Eu poderia escrever páginas sobre ele e sobre as reflexões que a obra me despertou. Mas isso interessa principalmente a mim, a minha construção pessoal. Ao invés disso, tomo a liberdade de transcrever um trecho do livro, um escrito de Gomez feito pouco antes de sua morte e que seu filho, por sua vez, transcreve no livro.

Penso que é um poderoso texto para todos aqueles que buscam a justiça, a cidadania, a evolução da sociedade e a racionalidade.

Segue o trecho. Boa leitura, dele e do livro!

“Uma sociedade humana que aspira ser justa tem de oferecer as mesmas oportunidades de ambiente físico, cultural e social a todos os seus membros. Se não o fizer, estará criando desigualdades artificiais. São muito diferentes os ambientes físicos, culturais e sociais em que vivem, por exemplo, os filhos dos ricos e os filhos dos pobres na Colômbia. Uns nascem em casas limpas, com bom serviços, com bibliotecas, recreação e música. Outros nascem em barracos, ou em casas sem serviços sanitários, em bairros sem brinquedos, nem escola, nem assistência médica. Uns frequentam luxuosos consultórios particulares; outros, abarrotados postos de saúde. Uns vão a escolas excelentes. Outros, a escolas miseráveis. São-lhes oferecidas assim as mesmas oportunidades? Muito pelo contrário. Desde o nascimento, vivem em injusta desvantagem. E até antes mesmo de nascer, por causa da alimentação deficiente das mães, sua vida intrauterina já se desenvolve em condições de inferioridade. (…)

Estas são verdades irrefutáveis que ninguém pode negar. Por que nos  empenhamos, então – negando esta realidade – em conservar o estado de coisas? Porque o egoísmo e a indiferença são características dos cegos às evidências e dos satisfeitos com suas próprias vantagens, que negam as desvantagens dos demais. Não querem ver o que está à vista de todos, e assim manterem seus privilégios em todos os campos. O que faze diante dessa situação? A quem cabe agir? É claro que quem deveria agir são os prejudicados. Mas eles, em meio às suas necessidades, angústias e tragédias, dificilmente tem consciência desta situação objetiva, não a interiorizam, não a tornam subjetiva.

Por mais paradoxal que pareça – mas a história mostra que tem sido assim -, cabe a alguns daqueles cuja a vida pôs em melhores condições despertar os oprimidos e explorados para que reajam e tentem mudar as injustas condições que os prejudicam. Foi assim que ocorreram as mais importantes mudanças nas condições de vida dos habitantes de muitos países, e estamos sem dúvida vivendo uma etapa histórica em que, por todo o mundo, há grupos de pessoas eticamente superiores que não aceitam como um fato natural a perpetuação da desigualdade e da injustiça. Sua luta contra o ‘establishment’ é uma luta dura e arriscada. Têm de enfrentar a resistência e a ira dos grupos política e economicamente mais poderosos. Têm de enfrentar consequências, com o prejuízo de sua tranquilidade e seus interesses individuais, abdicando de alcançar o chamado ‘sucesso’ na sociedade estabelecida.

Mas há uma força interior que os impele a trabalhar em prol dos que necessitam de sua ajuda. Para muitos, essa força constitui a razão de ser de sua vida. É essa luta que dá significado à sua vida. Tem sentido viver se, ao morrer, o mundo é um pouco melhor graças ao nosso trabalho e esforço. Viver simplesmente para desfrutar a vida é uma legiítima ambição animal> mas para o ser humano, para o Homo Sapiens,  é contentar-se com muito pouco. Para nos diferenciarmos de outros animais, para justificar nossa passagem pela Terra, temos que aspirar a metas mais altas que o mero gozo da vida. A fixação de metas distingue uns homens de outros. E aqui o mais importante não é alcançar tais metas, mas lutar por elas. Nem todos podem ser protagonistas da História. Como células que somos do grande corpo universal humano, somos entretanto conscientes de que cada um de nós pode fazer algo para melhorar o mundo em que vivemos e onde viverão os que vierem depois de nós. Devemos trabalhar para o presente e para o futuro, e isso nos trará maior gozo que o simples desfrute dos bens materiais. Saber que estamos contribuindo para um mundo melhor deve ser a mais alta aspiração humana.”

 

Companhia das Letras, A ausência que seremos, de Héctor Abad.

Brochura, 14.00 x 21.00 cm.

ISBN: 9788535918977.

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