Persépolis (Final) Por Valéria Pisauro

Posted on 16 de março de 2013 por

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IV – TEMPO E ESPAÇO:

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“Persépolis” narra quinze anos da vida de Marjane Satrapi, desde a infância em Teerão no seio de uma família progressista, passando pela Revolução Iraniana; queda do Xá; instalação de um regime fundamentalista e repressor, até à guerra contra o Iraque e o seu exílio como estudante em Viena aos 22 anos, e, finalmente um regresso a casa.

O filme faz uma crônica sobre a situação política do Irã (indo do final da década de 70 até o início dos anos 90), um país que tem uma posição geográfica estratégica na região em que está situado, mas que tem uma história de disputa de poder muito complexa.

 

V – TEMÁTICA:

“Se não virmos ás pessoas como seres humanos, podemos bombardeá-las e nada acontece. Diariamente são mortas centenas de pessoas no Iraque e nós nem sequer fizemos um minuto de silêncio”, afirma Satrapi.

O filme tem como tema a história do Irã contemporâneo através da visão de uma criança de nove anos descendente de uma família intelectual com grandes ambições: ser a última profetisa da galáxia e assim poder salvar o mundo.

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A história de Marjane tem como pano de fundo os acontecimentos históricos que moldaram seu destino e jogaram um papel não tão insignificante no moldar do mundo: a Revolução Iraniana de 1979 e o que se lhe seguiu. O derrube da monarquia levou à chegada ao poder da República Islâmica. Assim, “Persépolis” retrata a perda da inocência. Quando encontramos Marji pela primeira vez, ela é uma menina de nove anos que, nas suas próprias palavras, usa roupas “Adidas”, tem Bruce Lee como ídolo. No entanto, a situação política do seu país é um verdadeiro caos. O Xá e seu regime brutal está prestes a ser deposto e toda esta realidade lhe é explicada pelo seu pai (dublado por Simon Abkarian) e pelo seu tio, que foi um ex-prisioneiro político.

A primeira parte do filme apresenta um divisar da vida e da luta de três gerações da família de Marjane: a história da ditadura; do petróleo; revolta e revolução.

Diálogos e imagens simples relembram a história amarga, ridicularizam os tiranos, enquanto seduz o espectador a um contexto histórico-social e cultural de um país que aderiu ao conservadorismo e repressão muito parecidos à Inquisição.

Sem intenções moralistas, “Persépolis” parte do particular para o universal, cruzando ambas as narrativas e sendo simultaneamente íntimo como uma biografia e abrangente no testemunho, à procura de uma identidade no contexto de uma vida sob tirania. E se resta alguma ideologia, é a da integridade pessoal nas relações humanas.

Assim, a história que integra a herança familiar de Marjane e que define a sua vida faz parte da herança coletiva que molda a existência, as esperanças e os sonhos de um povo.

A infância de Marjane é marcada pelas figuras de familiares que lutaram contra o sistema dominante. O pai da mãe, nascido príncipe numa dinastia derrotada, tornou-se comunista. O seu tio aderiu ao Partido Democrático do Azerbaijão, um partido que apoiou a então socialista e vizinha URSS e tentou criar uma região autônoma antes de ser esmagado pelo governo central. Além de dar um esboço de certo período histórico, aponta para outra verdade: as contradições fundamentais da sociedade empurram constantemente alguns intelectuais privilegiados para a revolta contra o sistema. Eles apercebem-se da natureza obsoleta das relações dominantes e essa compreensão da necessidade de mudar o mundo e de construir outro mundo com toda uma nova base coloca-os nas fileiras dos oprimidos e mesmo, por vezes, à frente das suas lutas.

Dessa forma, o pano de fundo de “Persépolis” é baseado na própria trajetória história do Irã, passando pela imposição religiosa imposta no país, nesse cenário se encontra Marji. Nascida nos anos 70, ela assiste a Revolução dominar seu país e levar os seus pais às manifestações.

Logo após a revolução, numa rua de bairro, Marjane e outras crianças perseguem um menino cujo pai é membro da Savak, a polícia secreta e torturadora do Xá. Mas quando o confronta, ela não lhe consegue bater. Mais tarde, o Deus de Marjane diz-lhe para não se preocupar e deixar a justiça para ele.

O derrube da monarquia levou à chegada ao poder da República Islâmica. A narração em voz sobreposta das principais personagens do filme acompanha os desenhos de Satrapi, imagens de vagas de repressão, mulheres forçadas a cobrir o cabelo, detenções, fugas do país e execuções. A República Islâmica ataca a maré revolucionária que derrubou o Xá.

Assiste-se a efusão e a alegria esperançosa das massas iranianas durante os primeiros dias da revolução, quando as manifestações contra a monarquia apenas tinham começado e o riso da pequena Marjane quando joga com o pai.

Em seguida, Anoush, o tio de Marjane que fora libertado das prisões do Xá pela revolução, é novamente preso. Marjane visita-o na prisão na noite anterior à sua execução e fala-lhe sobre sua convicção na vitória final do proletariado.

A execução de Anoush torna-se uma alegoria da derrota da revolução. Numa cena pungente, ela enfurece-se contra o Deus que ela imagina: um velho de barbas brancas sentado nas nuvens. Ele não representa necessariamente uma religião em particular.

Marjane rejeita-o, mas essa rejeição não é permanente.

O Deus de Marjane, tal como outras pessoas, só existe para compreender a realidade, ele nunca é realmente útil. Apenas representa a disputa entre o conhecido e o desconhecido no seu cérebro, em contrapartida, a sua avó representa o papel da experiência e da consciência.

Ela pragueja livremente, colhe jasmim que põe no sutiã para “cheirar bem” e ensina Marjane a preservar a sua integridade. Sempre que Marjane revolta-se contra aos seus valores por fraqueza ou medo (seja face ao racismo na Áustria ou aos Pasdaran no Irã), a avó enfatiza a importância da perseverança nos princípios de uma pessoa, uma vez que ela viu e sabe que os seres humanos, mesmo na mais difícil das situações, têm escolhas.

Esse Deus faz outra aparição no filme mais tarde quando, ao fracassar na sua tentativa de encontrar uma vida nova no estrangeiro, Marjane fica cansada da vida e quer morrer. Mas ela é agora mais experiente e atenta ao seu papel na mudança. E assim Marx acompanha Deus nessa cena. O Deus de Marjane, com o seu aspecto e voz de banda desenhada, é um dos muitos toques humorísticos do filme, mas reflete ao mesmo tempo a disputa da mente humana no processo de compreensão da realidade.

A realidade da implantação da República Islâmica que se seguiu ao golpe de Estado de 1981 é trazida à tela pelos rostos de raparigas que usam véus negros. Mas isso, apesar de amargo, é apenas parte da realidade.

Uma alteração na personalidade dessas raparigas, retratadas com linhas simples, mas vivas, contrastam nitidamente com os panos negros que envolvem os seus rostos dinâmicos. Uma nova força está a emergir das profundezas da sociedade. A revolta das mulheres e das raparigas face à República Islâmica e à sua velha e podre ideologia faz parte do tecido da história e a narradora é ela própria um símbolo dessa força vibrante.

Como toda mulher, ela também foi obrigada a usar o véu. Andar com jaqueta jeans e tênis pelas ruas, como numa das histórias do volume 2, levou Marji a um interrogatório de uma patrulha de senhoras pró-revolução.

Mas isso é detalhe perto do que acontece no resto do país. Os pais de Marji, intelectuais liberais com alguns vínculos com o governo anterior, começam a perder amigos, que misteriosamente desaparecem. Vizinhos e parentes fogem enquanto podem (o país fecha suas fronteiras em 1981). Com o início da guerra contra o Iraque, em 1980, uma bomba pode repentinamente cair no seu bairro. O terror e a falta de perspectiva tomam conta.

Em meio a toda tristeza da situação do Irã, a biografia de Satrapi é forte ao revelar o que é ser um civil no meio de uma revolução, de uma transformação cultural violenta e de uma guerra. Mas, no clima de terror e incerteza do país, Marji e sua família ainda encontram tempo para rir. São estes momentos, de humor no meio do caos (às vezes um tanto nervoso), que tornam “Persépolis” imperdível.

O filme faz recortes da vida da protagonista; da criança curiosa e observadora até a adolescente petulante e intransigente, que ouvia discos do Iron Maiden e promovia bate-boca com professores em sala de aula. Sua conduta contestadora é apoiada pelos pais, profundo detratores do radicalismo e das leis religiosas do governo do Irã.

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Na medida em que se tem a entrada da Nova República Islâmica, com seus “Guardiões da Revolução”, viver no Irã fica cada vez mais perigoso e seus pais decidem enviá-la para a Áustria. E é a partir daí que vemos Marji passar por um processo de amadurecimento, o qual vai ser marcado pela tentativa dela de encontrar seu lugar e seu papel no meio de tudo isso.
Longe de casa, lida com alguns preconceitos e decepções amorosas e sofre pela falta da avó, sua melhor amiga, e da mãe.

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Na Áustria passa viver num dormitório administrado por freiras. Estas lembram os assassinos islâmicos do Hezbollah no Irã. Os seus rostos são tornados feios pelo mesmo tipo de franzido à Khomeini habitualmente usado pelos Pasdaran (Guardas Revolucionários) do regime e pela Basij (a polícia da moralidade islâmica). Em Viena, Marji sofre de solidão, nostalgia, racismo e, ao mesmo tempo, alegria do primeiro amor e da primeira decepção.

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Uma menina rebelde vinda do Irã, Marji alia-se com a maioria dos desterrados da escola, os autoproclamados anarquistas, nihilistas e outros colegas rebeldes. Algumas linhas divisórias fundamentais da sociedade são apresentadas como diferentes reações em relação a esta rapariga estrangeira e escura: o racismo, a misoginia e a igreja por um lado, e a revoltacontra o poder por outro.

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Com o coração desfeito, a solidão e a nostalgia, Marji decide voltar às suas raízes: o Irã de 1988, após o massacre de presos políticos pelo regime, depois da guerra com o Iraque. Quase um milhão de pessoas tinha morrido ou ficado incapacitadas. Inúmeras ruas foram rebatizadas com nomes de mortos e um passeio pela cidade era “um passeio por um cemitério”. O fracasso de Marji na Áustria, combinado com o cinzento e o peso da morte em Teerão, tiram-lhe as forças. Começa a pensar na morte. É aqui que Deus e Marx lhe aparecem e lhe dizem para ser forte. Marx salienta com um sorriso que a luta continua. Marjane decide não abandonar a esperança. Levanta-se e leva a sua decisão à prática. Faz os exames, vai para universidade e dá início a mais um episódio da sua vida.

 

VI – CONSIDERAÇÕES GERAIS:

Este filme coloca importantes questões sobre a revolução. Questões a que não responde necessariamente, mas que, quando colocadas, despertam o pensamento e exigem uma análise. Numa cena, um familiar de Marjane está doente e precisa de um bypass no coração, uma operação que não era possível fazer no Irã. Para viver, precisa de autorização para deixar o país. A sua esposa dirige-se ao responsável administrativo do hospital para pedir autorização. O novo chefe tinha sido porteiro do seu prédio antes da revolução. Tornou-se num muçulmano inflexível, deixou crescer a barba, não olha para as mulheres nos olhos… e claro que recusa a autorização de saída. O destino do paciente, suspira ele, “está na vontade de deus”. A cena faz-nos sentir profundamente a impotência das pessoas face aos novos reacionários no poder e a predomínio da ignorância e da superstição contra a ciência, a lógica e os interesses das pessoas.

Essa personagem salienta uma das questões políticas e ideológicas que todas as revoluções enfrentam. A Revolução abala as velhas relações e abre caminho à criação de novas relações. Mas quando a liderança está na mão de forças cujo interesse é preservar a velha ordem sob uma nova forma, como foi o caso do Irã em 1979, as tendências retrógradas entre as pessoas podem ser reforçadas e transformadas numa ferramenta nas mãos da nova classe dominante. Uma dessas tendências é a de usar as oportunidades oferecidas pela situação para se autopromoverem e tentarem obter posições a que antes não tinham acesso. Por vezes, essa tendência entre os estratos mais baixos está ligada a um sentimento de vingança contra os que no passado tinham posições privilegiadas; e muitas vezes essa violência não visa às classes dominantes, mas os estratos médios educados. É claro que, sem uma mudança fundamental nas relações existentes, apenas um punhado (que normalmente têm um aguçado olfato oportunista) chega a algum lugar e a grande maioria continua a ser despojada e reprimida. A República Islâmica, que usou todos os recursos ideológicos reacionários, sobretudo a religião, para estupidificar as massas e estabelecer e preservar o seu domínio tirou proveito desta tendência retrógrada para manter uma fachada populista e preservar a sua base entre um sector das massas. O resultado foi uma brutal repressão dos intelectuais e das massas.

“Persépolis”, à sua própria maneira, expõe completamente os crimes da República Islâmica. Mas, apesar do que alguns escolham assumir, não negligencia o papel do Ocidente levar dos tiranos fantoches ao poder e na repressão das massas. Os espectadores dão-se conta do papel da Grã-Bretanha no golpe de estado que levou o pai do Xá ao poder, na pilhagem do petróleo do país, no treino dos torturadores da Savak pela CIA e na venda de armas pelos países ocidentais a ambos os lados da guerra Irã-Iraque. Tudo isso são lembranças de que o Irã não existe num vácuo, mas faz parte de um sistema que espalhou os seus tentáculos por todo o globo e que a luta que aí ocorre faz parte da luta contra esse sistema global.

Valéria Pisauro é Professora de Literatura e História da Arte

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