Cena I:
A mãe, cansada, depois de intenso dia de trabalho e afazeres, volta para casa carregada de sacolas de supermercado, pelos ônibus, pelas ruas, pelo portão, enfim, pela casa! Seu celular toca, atendendo, enquanto descarrega as compras na mesa da cozinha:
(Mãe)-“Oi, filha! Saiu antes de eu chegar?”
(Filha)-“Mãããeeeee, com voz chorosa: Onde você está?”
-“Acabei de chegar”
-“Mãããeeeee, continua a voz chorosa de 21 anos, por que você não está aqui no terminal (de ônibus) ?”
-“Acabei de vir daí: o que aconteceu?”
-“Esqueci meus passes e meu dinheiro”
-“Estou indo para aí”
E a mãe termina de jogar as compras em cima de mesa, esbaforida, procura a chave… Novo toque do celular:
-“Mãããeeeee, já aos prantos, meu ônibus chega em 10 minutos, então, não vai dar tempo mesmo”
“Para de chorar e me espera”
Mais esbaforida ainda, na carreira (como se dizia) despenca ladeia abaixo, enquanto torce: “Tomara que os gatos não derrubem o azeite!” Próximo ao terminal, sentada em u’a mureta, a filha com ar desconsolado e irritado, espera. Véspera de feriado, a filha vai passear. Ao ver aquela figura correndo alucinadamente em uma sandália de salto plataforma, dá risadas (é isto mesmo, Sr. Revisor do texto: ela não sorri, ela ri). Quase sem fôlego, a mãe entrega passe e dinheiro e a filha comenta:
-“Muito engraçado você correndo daquele jeito. Deve ser muito “gozado” ser mãe! Obrigada. Tchau”!
Mmmmmm, maio, mês das mães, das noivas, maio das mamães, mmmmmm,manha! Manha é derivativo de mãe! Portanto, se não houvessem mães, não haveriam manhas? Ou se não houvessem manhas, não haveria mãe?
E vai começar aquela lenga-lenga: “Deus não podia estar em todas partes ao mesmo tempo, e por isso criou às mães.” ; “ A mãe compreende até o que os filhos não dizem”; Ser Mãe é assumir de Deus o dom da criação, da doação e do amor incondicional. Ser mãe é encarnar a divindade na Terra.”; “Os braços de uma mãe são feitos de ternura e os filhos dormem profundamente neles.”; “Mãe: a palavra mais bela pronunciada pelo ser humano”, enaltecendo a rainha-do-lar, a dadivosa das dadivosas, as semi-deusas: MÃES!
(Eu sou mãe, amo de paixão meus filhos e nunca os maltratei propositadamente, mas…)
Qualquer uma, qualquer animal fêmea pode ser mãe! Ser/ tornar-se mãe não nos faz melhores que ninguém! Se houvesse menos endeusamento com relação às mães, as decepções seriam menores! Mãe não é título universitário, conquistado à base de muito estudo e dedicação; não é cargo, patamar profissional, conquistado pelo esfôrço. Mãe é um estourar de “camisinha”, uma falta de controle do ciclo hormonal, um acaso…
Para tantos meninos e meninas, moças e rapazes, que foram maltratados e/ou abandonados pelas suas progenitoras: o que é mãe?…
Sei que há mães que planejaram seus filhos, que lutaram para tê-los, mas – ainda assim – nada disso nos torna algo além de seres humanos.
Nunca o li, mas existe um livro (não me recordo qual seja) que analisa criteriosamente a questão do mito materno. Existem muitas nuances a serem discutidas neste assunto, obviamente não conseguirei abordar todas neste texto, que bem menos que um estudo é uma reflexão oriunda de minhas vivências e observações.
Quantas crianças, jovens, adultos têm sérios problemas, alguns sendo tratados em consultórios psicológicos e/ou psiquiátricos por conta de relações traumáticas e/ou mal resolvidas com suas mães? ….
Há os casos extremos, mas, em geral, as mães têm boas intenções e um amor que explode além delas mesmas, exemplificado por tantos heróicos dos quais temos conhecimento. Mas, continuam a ser humanas, a despeito de tanta dedicação e abnegação. Isto é, continuam a errar e a transformar bebês em neuroses ambulantes. Esta simples verdade, a de que são seres humanos inevitavelmente falíveis, já deveria ser suficiente para que não se criasse uma expectativa demasiada em relação ao papel materno, diminuindo conflitos psicológicos tanto da parte das mães que se esmeram e são cobradas a ser onipotentes e onipresentes na vida de seus filhos, quanto para os filhos que diminuíriam suas expectativas quanto ao ser materno e aceitariam a realidade com mais maturidade e suavidade.
É um peso impôsto pelo mito da mãe-deusa, que sobrecarrega tanto mães quanto filhos numa luta interna, inglória e cruel.
Em todas nossas funções e papéis deveríamos nos esforçar por nos tornarmos melhores. A evolução interna, o auto-conhecimento e aprimoramento pessoal não se desenvolve em linha reta, nem em espiral, mas em ondas que sobem-e-descem, sobem-e-descem em movimentos contínuos e ininterruptos, rumo ao infinito e ao desabrochar do verdadeiro -eu-. A curva crescente somos nós, mas a curva descendente também somos nós. Com certeza, podemos ser melhores filhos e melhores pais, mas –principalmente– deveríamos poder retirar de nossos ombros a pesada expectativa social de sermos mães-deusas, de nos relacionarmos com mães-deusas, de obrigarmos a que se comportem conosco como mães-deusas! Que não nos endeusem mais! E que nossas próprias mães possam ser humanas! Consequentemente, filhos não precisariam adorar suas mães, mas amarem-nas como pessoas, reconhecendo sua dedicação, respeitando sua vivência e experiência, assim como seus defeitos.
Isto me lembra a música: “Dentro de Mim Mora Um Anjo”
Dentro de Mim Mora Um Anjo
(Sueli Costa/Cacaso)
“Quem me vê assim cantando
Não sabe nada de mim
Dentro de mim mora um anjo
Que tem a boca pintada
Que tem as unhas pintadas
Que tem as asas pintadas
Que passa horas à fio
No espelho do toucador
Dentro de mim mora um anjo
Que me sufoca de amor
Dentro de mim mora um anjo
Montado sobre um cavalo
Que ele sangra de espora
Ele é meu lado de dentro
Eu sou seu lado de fora
Quem me vê assim cantando
Não sabe nada de mim
Dentro de mim mora um anjo
Que arrasta suas medalhas
E que batuca pandeiro
Que me prendeu em seus laços
Mas que é meu prisioneiro
Acho que é colombina
Acho que é bailarina
Acho que é brasileiro
Quem me vê assim cantando
Não sabe nada de mim”
Dia 18 de maio, um final de semana após comemorar o Dia das Mães, irei realizar minha atividade voluntária na Casa do Bom Menino como participante do grupo PiradüBem, cuja camiseta visto na fotografia deste blog.
Massacrados pelo mito da mãe, estas crianças e jovens, provavelmente, acreditam-se muito menos privilegiados do que realmente o são.
Dentro de todos nós mora um anjo, mas como ainda não somos seres angelicais na totalidade, eles sangram e ferem. Nós os prendemos e somos presos a eles. Não passou da hora de nos libertarmos das amarras do tem-que-ser? Não passou da hora de estimularmos relações mais verdadeiras e menos intermediadas por papéis impossíveis de interpretar? Não estamos atrasados em nos relacionarmos como seres humanos, sem desnecessárias expectativas? De sermos humildes?
Ser mãe amplia a consciência de mim mesma, me aproxima do amor divino, mas ainda a anos-luz do amor realmente incondicional. Se nos olharmos como somos, sem véus, sem vieses, enxergaremos seres humanos cumprindo suas funções maternas em corpo e alma falíveis e nem por isto menos merecedoras de amor e gratidão.
Como diria J. L. Moreno:
“E quando estiveres próximo tomarei teus olhos
e os colocarei no lugar dos meus
e tu tomarás meus olhos e os colocarás no lugar dos teus
então te olharei com teus olhos
e tu me olharás com os meus”
E quando conseguirmos nos relacionar, amar, viver, sentir, sem expectativas, seremos mais felizes e muitos conflitos emocionais internos cairão por terra, como ídolos de barro que se desfazem na benfazeja chuva.
Nascida com o nome Carla Ramos Bettarello, adota o Betta e assume-se como Carla Betta, pela invenção de um amigo. Mais tarde, descobre que seu pai era conhecido assim em seu tempo de faculdade. Mãe coruja assumida de um casal maravilhoso e lindo de filhos. Conta e se encanta com as histórias: objeto de estudo e prática artística.
Fabio Lisboa
8 de maio de 2013
Mãe, faz as manhãs mais manhosas e os filhos mais humanos – esperemos que eles se lembrem que as mães (como você bem nos lembra, Carla) também são humanas e também querem acordar com manhãs manhosas.
Nancy
8 de maio de 2013
Muito bom, seu artigo, Carla. É isso mesmo: é preciso desmitificar o amor materno incondicional, a mãe idolatrada… É preciso humanizar a mãe e sair dos históricos estereótipos que pesam em nossos ombros. Parabéns pela produção!
Evandro
8 de maio de 2013
Obrigado por compartilhar conosco essa fantástica experiência.
Antonio Carlos Danelon
10 de maio de 2013
Beleza de texto. Profundo e perturbador. Inventaram tantos papéis para mãe que ela se perdeu de si mesma. Colocaram em seus ombros todo o peso da perfeição. Talvez por isso Jesus nunca chame Maria de mãe, mas de Mulher, pois nela está a essência, sendo mãe ou não. Se a mulher não for mulher de verdade não haverá “mãe” que dê jeito. Falando em Dia das Mães,muitas delas passarão essa data trabalhando. Que ironia!
Renata Whitaker Penteado
12 de maio de 2013
Ótimo texto! A cobrança existente nos papéis de mães e filhos é algo surreal. Quando minha filha nasceu percebi o tamanho dessa cobrança e por sorte, bom senso ou seja lá o que for.. consegui me permitir sentir raiva, medo e vontade de “sumir” sem me sentir culpada. Afinal somos todos humanos e se nos permitirmos sentir as coisas como elas realmente são, nossas atitudes serão mais pensadas e ponderadas, e não extremas (como o abandono de um filho, por exemplo). Acho um absurdo a tal frase “ser mãe é padecer no paraíso”… na época das cólicas da minha filha ouvi isso algumas vezes; é ridículo. Sempre assumi que muitas vezes sentia vontade de “jogar” aquele bebê que chorava sem parar “pela janela” as pessoas ficavam horrorizadas!! Mas é a mais pura verdade, mães e filhos sentem raiva, mas também sentem amor, simples assim.
Carla Betta
13 de maio de 2013
Agradeço os comentários. Confesso que fiquei receosa em desmitificar este estereótipo, mas grita no meu ser esta necessidade! Quando penso nas crianças e jovens que não têm mães e se sentem massacradas com este mito; quando penso em quanto seríamos mais felizes se nos encarássemos como seres humanos que somos; quando penso na psicoterapeuta que me dizia: “90% dos problemas estariam resolvidos se não tivéssemos expectativas em nossas relações; quando penso em mim mesma na relação com minha mãe e na relação com meus filhos… ai! Este grito tem que sair da garganta!..