Robert Rodriguez, Frank Miller, Quentim Tarantino
HISTÓRICO:
Foi com um curta-metragem de três minutos com Josh Hartnett e o prólogo: “Era uma vez no México”, que o cineasta Robert Rodriguez convenceu Frank Miller, o mais experiente no mundo das Histórias em Quadrinhos, a compor uma parceria e mergulhar num projeto audacioso de transportar suas HQs para a tela.
O autor da HQs gostou tanto que co-dirigiu o filme.
Frank Miller, idolatrado no mundo das HQs, a partir do fim da década de 70, ampliou a dimensão das HQs transpondo-as do mundo infantil ao mundo adulto, criando personagens e reformulando os antigos heróis dos gibis.
Em 1979, surgiram com as versões de “Demolidor e Elektra” e, em 1983, Miller realizou uma grande façanha ao desenhar a série “Batman, o cavaleiro das trevas”.
Essa série causou críticas à mídia e estranheza à sociedade moderna, pois o infalível homem-morcego é retratado com defeitos, virtudes humanizadas, personalidade perturbada, decadente e neurótica. Depois, lançou “Batman: ano um” e “Batman Begnis”.
Autor sempre engajado em problemas sociais criou também, “Liberdade”, obra que debate sobre o racismo, o militarismo e o consumismo nos Estados Unidos da América.
“Sin City” é uma grande inovação cinematográfica dos quadrinhos de Frank Miller pelas mãos competentes de Robert Rodriguez, mas não deve ser comparada a nenhuma das recentes transposições de gibis para as telas, especialmente ao não menos badalado “Batman Begins”.
Robert Rodriguez sobreviveu no mundo cinematográfico dirigindo filmes comerciais como “As aventuras de Shark Boy” e “Lava Girl”, quanto a “Sin City”, sua preocupação maior não era agradar a mídia e sim, agradar Frank Miller.
Na época em que o cineasta Robert Rodriguez decidiu filmar um longa baseado nos gibis, procurou Frank Miller que de início rejeito a ideia, mas como já dissemos, bastou um curta, aliás o curta é a história que introduz o filme para que Miller aderisse ao projeto. E, o resultado da parceria pode ser encarado como reinvenção de um gênero tal é a fidelidade em relação à obra original. Aliás, definir “Sin City” como adaptação de quadrinhos para o cinema chega a ser injusto; correto é falar em transposição.
O filme, portanto é a transposição dos quadrinhos para a tela. Rodriguez simplesmente pegou os enquadramentos de Miller e filmou-os.
Os diálogos frios, indiferentes e cínicos são idênticos ao original dos quadrinhos, inclusive as cores. Apenas o ritmo fica meio pausado, pois as revistas são extremamente ágeis.
TÉCNICA / MONTAGEM:
“Sin City” não só tem uma narrativa fascinante como também é totalmente inovador no campo da estética cinematográfica.
A revolução atravessa várias dimensões do filme, a começar por sua estrutura narrativa. Usando tecnologia digital avançada, Rodriguez conseguiu levar para a tela três histórias da série: “The Hard Goodbye” (a primeira história escrita pelo Frank Miller para “A Cidade do Pecado”; “Big Fat Kill” (“A Grande Matança”) e “That Yellow Bastard” (“O Assassino Amarelo”), além do conto “O Cliente Sempre tem Razão”, que foi tirada de “A Dama de Vermelho”, que serve como abertura para o filme.
Todas as histórias são cruas e giram em torno dos temas recorrentes de “Sin City”. Como o próprio Miller havia descrito, essa é uma cidade de “ruas permeadas por sangue, corrupção e ódio”.
Recriando o universo dos chamados filmes “noir”, produções norte-americanas das décadas de 40 e 50 recheadas com mulheres sedutoras e fatais, heróis problemáticos ou anti-heróis, com um pouco da estética do expressionismo alemão dos anos 20 e trabalhando com a narrativa em “off”, ou seja, em que a personagem vai contando à história que estamos vendo, apresenta-nos um submundo onde erotismo e violência caminham lada a lado.
“Sin City” é uma bricolage, entrelaçando as três histórias mediante personagens que transitam na narrativa, sem, contudo, manter a continuidade temporal e a narrativa linear.
Aliás, não só o tempo e o espaço não dão continuidade à obra, mas o “ser” também passa por metamorfose.
Frank Miller tece uma teia com o enredo. As personagens se cruzam em momentos distintos. Mas, as personagens nunca se encontram. Há um fio da meada que costura a estória.
Os desenhos são quase caricaturais, não há muito detalhe, é puro branco no preto, ou quase, já que uma cor ou outra é adicionada, quando relevante para trama ou para os olhos, dando um ar, ao mesmo tempo, alegórico-poético ao filme e lembrando fotos antigas. As exceções são fantásticas: o vermelho do sangue ou dos vestidos das mulheres fatais, um batom, a pele de um certo bastardo, os lençóis de cetim, enfim, pequenos detalhes, aqui e ali, que salpicam da tela
LINGUAGEM:
Há pouco diálogo e muita narração em “Sin City” e podemos compreender esse recurso como uma poética de navegação pelos espíritos solitários, assassinos, prostitutas, afinal, seres oriundos de uma subcultura lingüística.
Alguns diálogos são forçados e exagerados, porém esta escolha foi proposital para contextualizar o determinismo (meio/raça/momento) das personagens.
ESPAÇO / PERSONAGENS:
A personagem principal de “Sin City” é justamente a cidade, a sombria e apavorante “Basin City” ou “Sin City” (cidade do pecado, exatamente como subtítulo em português).
Uma cidade fictícia, um mundo sem lei, habitado por toda sorte de criminosos, por homens durões e valentes, torturados em seu interior, espelhando os monstros que habitam seus becos escuros e ruelas, bêbados, prostitutas armadas, mafiosos, matadores de aluguel, policiais corruptos, gangues…
O único momento de “Sin City” no qual vemos um cenário real é quando as personagens entram num bar, que serve de ponto focal e inter-relação entre as três tramas do filme. As personagens são portadoras de um código moral nada correto e por mulheres-fetiche que lutam para sobreviver. Tratam o mal de forma tão natural que as cenas mórbidas são absorvidas pelos nossos sentidos como parte do cotidiano deste coletivo biológico que chamamos de civilização.
As personagens são tipificadas, alegóricas e poucos têm de individualidade. São estereótipos de um microcosmo que não se adaptam ao “status quo” da sociedade.
Corrupção, violência, valores morais em xeque e ausência do Estado são características da caótica “Sin City”. A analogia esbarra apenas no fato de que não temos aqui um herói disposto a salvar a cidade injusta. É um mundo distorcido, habitado por anti-heróis imorais, com fraquezas de caráter e dispostos a métodos cruéis para justificar vinganças e propósitos pessoais.
Hartigan (Bruce Willis), Marv (Mickey Rourke) e Dwight (Clive Owen) protagonizam tramas incendiárias cada um a sua maneira, motivados por mulheres de personalidades igualmente ambíguas. Além da participação surpreendente de coadjuvantes como Benicio Del Toro, Jéssica Alba, Rosário Dawson, Brittany Murphy e Elijah Wood.
Com figuras que beiram o surreal e tendo o dedo de um terceiro diretor, Quentim Tarantino, o cultuado diretor de “Pulp Fiction” e “Kill Bill”, que é amigo de Rodriguez e fã incondicional de Frank Miller, topou dirigir o episódio da “Grande Matança” cobrando a quantia simbólica de US$1, aparece em uma das mais bizarras cenas, em que Dwight Owen dirige um carro em alta velocidade e conversa com a cabeça decepada de Jackie Boy.
As mulheres em “Basin City” são fatais. Mas nenhuma é tão mortal quanto Miho (Devon Aoki), uma prostituta-ninja que é aparentemente muda.
RESUMO DO ENREDO:
O filme inicia-se apresentando John Hartigan (Buce Willis) como o único policial honesto de Sin City. Hartigan, que está prestes a se aposentar quando recebe uma informação: um pedófilo sequestrara a quarta garota e decide que antes de abandonar o distintivo, resolveria esse caso.
Seu parceiro, Bob (Michael Madsen) o acompanha e tenta persuadi-lo a não executar a ordem, mas Hartigan insiste em sua ação. Quando finalmente encontra o assassino, descobre que o culpado é Roark Jr. (Nick Stahl), o desprezível herdeiro do Senador Roark, a milionária e apodrecida família que domina “Basin City” há décadas.
Ele troca tiros com o criminoso, desarma-o e salva a pequena Nancy Callahan. No entanto, é traído por seu companheiro. Apanhado em meio há uma conspiração, Hartigan é acusado por todos os estupros e perde sua família, honra e liberdade.
O desfecho da história só é revelado no final do filme, tornando a obra cíclica ou circular.
Preso durante oito anos, ele é obrigado a manter silêncio para que nada aconteça com sua protegida Nancy.
O surgimento de uma carta com um estranho presente e a visita de um violento sujeito faz Hartigan assinar a confissão de culpa e defender Nancy que agora com 19 anos, transformou-se numa bela e desejada stripper de um bar.
THE HARD GOODBYE:
“Ande pelo beco certo de Sin City…e você vai encontrar qualquer coisa”.
Marv
Intercalando as histórias, encontramos no bar a personagem Marv (Mickey Rourke), um sujeito monstruoso, ex-criminoso, composto de músculos e deformação.
Goldie (Jamie King) foi a única mulher que lhe deu carinho e com quem passou a melhor noite de sua vida e, foi misteriosamente assassinada ao seu lado.
Marv, “uma montanha feiosa de músculos”, apaixonado e inconformado com a morte trágica de sua amante, parte para vingança até encontrar os responsáveis pelo crime.
Em seu caminho depara-se com Kevin (Elijah Wood), um rapaz assustador, assassino canibal e um cardeal da cidade, poderoso e corrupto.
Marv apanha, leva vários tiros, é traído, vilanizado, mas não desiste. À medida que desvenda o mistério, surge das sombras para a luz, marca do cinema “noir”.
A GRANDE MATANÇA:
Alguns policiais corruptos e bêbados, liderados pelo asqueroso, Jackie Boy (Benicio Del Toro), saem em arruaça para arranjar confusão e acabam se conflitando com as prostitutas da Cidade Velha (ou Cidade Baixa) e com um detetive.
A Cidade Velha era o território comandado e policiado pelas prostitutas. Lá, a polícia não manda e a máfia está bem longe, anulando a popular figura do cafetão.
Os arruaceiros ameaçando uma das garotas com sua arma são enfrentados pelas prostitutas (Miho, a prostituta-ninja e Gail, a sadomasô) que se defendendo, acabam por matar Jackie Boy. Entretanto, com o auxílio de Dwight (Clive Owen), que vinha seguindo Jackie Boy, desde a casa de sua nova namorada, a garçonete Shellie (Britanny Murphy), acaba descobrindo que o morto era policial. Para evitar que sua morte atraia os homens de azul para o território de Gail, uma espécie de líder das prostitutas, transformando o local num palco sangrento, elas contam com a ajuda de Dwight para se livrar do corpo do policial.
No meio do caminho, um diálogo insano e surreal é travado entre o policial morto e Dwight, o defensor das prostitutas.
A cena é exemplar na utilização da cor no longa: as sirenes da viatura que os seguem, alternam manchas azuis e vermelhas em Dwight, denotando seu estado mental perturbado. Em outras cenas, o vermelho é usado para marcar a violência ou o erotismo de uma mulher.
ASSASSINO AMARELO:
Hartigan (Bruce Willis) retoma a cena e busca a stripper Nancy (Jéssica Alba), a garotinha que salvara oito anos atrás e que agora, transformara-se em uma linda e fatal mulher. Assina a confissão para sair da cadeia e o único policial honesto de Sin City, desdobra-se para protegê-la, sempre ameaçada pelo mais terrível assassino da cidade.
CONCLUSÃO:
“Sin City não tem moral. Em Sin City não existe nem culpa, nem perdão.”
É um filme que incomoda. Assassinatos violentos, corrupção, torturas e estupro. Espelha os monstros que nos habitam. Trata-se sobre o que há de pior na sociedade. O submundo do submundo. Neste país de lobos, qualquer parceria é um ganho incomensurável e qualquer traço de boas intenções é a redenção. Entregues à própria sorte, os homens dão livre vazão a seus desejos e poucos conseguem permanecer íntegros. Mas, apesar do tom evidentemente violento, o filme não tem relação com o clima de “espanca e arrebenta” das produções de Hollywood.
“Sin City” trata-se de uma transposição fidelíssima, quase “ipsi-literis”, da obra original. A escolha da estética e do conteúdo, os recursos de luz e sombra que Miller tanto explorou nas suas HQs, resultaram num divertido exercício metalinguístico: dos cinemas para o gibi e do gibi para os cinemas.
O tom de irrealidade, típico dos HQs, a criação de cenários que lembram pinturas e filmes do expressionismo alemão (perspectivas inusitadas, sombras distorcidas e enormes, exagero dramático) e fundamentalmente, as quase ausências de cores dão um ar poético e caricatural ao filme.
A história em quadrinhos em sua composição mais clássica trouxe ao desenho, o tempo e o movimento ao transformá-lo num meio narrativo. Sua simplicidade de traços e cores ajudou-a afeiçoar-se à fantasia e toda sorte de “realidade paralela”, como também trouxe um reconhecimento mais literário à produção quadrinística e ampliou seus parâmetros ilustrativos.
As narrativas em imagens ganharam outras possibilidades artísticas e representativas, aproximando-se por um lado da literatura e, por outro, da pintura, ao mesmo tempo em que se afastavam da simplicidade do desenho, ganhando espessura nos jogos de luz e sombra que permeiam o mundo em três dimensões.
“Sin City”, assim, não é mais uma série de revistas em quadrinhos. Destaca-se pela narrativa, capaz de envolver o espectador com maestria, pelo roteiro sutil ao entrelaçar cada uma das histórias. É um produto dinâmico, multi-artístico de uma cultura mestiça. Além de uma excitante experiência visual, cheia de metáforas.
O Bastardo Amarelo (Yellow Bastard) é uma desconstrução que objetiva uma recriação. Assim como, o Kevin – The Canibal que se alimenta da carne humana para antropofagicamente reconstruir o “ser”. O Marv é uma metamorfose que se mantém lúcido com doses cavalares de um Prozac genérico e metaforiza o medo da sociedade em olhar para os seus monstros interiores.
O pior é que essas aberrações são possíveis neste mundo em que vivemos e, embora, os aspectos psíquicos do filme deixam nossos monstros internos como se fossem crianças perdidas; somos todos indefesos contra o abuso de uma sociedade dita “civilizada”.
“Sin City” é uma alegoria do poder e da dominação e, como as pessoas organizam-se contra essa ação.
Nancy representa à ingenuidade, a insegurança, a pureza de uma criança perdida. Vítima de estuprador assassino, ela se vê sozinha e desprotegida. Apenas um velho policial vai ao seu encontro. O policial Hartigan salva a garota, destrói os testículos do estuprador e quando pensamos que a justiça foi feita; somos obrigados a ver que não existe justiça total, pois o poder está sempre acima de qualquer justiça.
O estuprador sobrevive e é soberano; enquanto, que o honesto policial apodrece na cadeia por oito anos: eis, o desconcerto do mundo!
Mais adiante, encontramos Nancy apaixonada pelo seu defensor. E vice versa. Será amor ou compaixão? Bondade ou agradecimento? Atração ou paternidade? Ou uma mistura com todos os outros sentimentos?
Marv, uma personagem paradoxal, é um monstro bom, que também se apaixona pela prostituta que o tratou bem. Será carinho, compreensão ou realmente amor?
Nietzsche dizia que: “ao fazer bem ou mal aos outros exercitamos nosso poder”. Esses poderes, essa forma de dominação nos leva às guerras, à autodestruição e, pior que as guerras externas, são as guerras internas que está corroendo a humanidade.
Conclusão: em “Sin City”, o amor é sinônimo de fraqueza e de tragédia – o amor levou o policial a dar um tiro na cabeça e Marv à cadeira elétrica. Como afirma Dwight no episódio três: “Amar sempre e nunca”, referindo-se ao amor efêmero e aventureiro e nunca se envolvendo, pois amar verdadeiramente é perigoso.
Valéria Pisauro é Professora de Literatura e História da Arte
Posted on 18 de maio de 2013 por blogdoamstalden
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