Este é um “Blog de sorte”. Desde o seu início tem contado com colaborações excelentes, dentre as quais as de Valéria Lima de Cássia, minha amiga e colega. Valéria é professora de literatura e história da arte, mas também compõe letras, escreve textos e poemas, além de trabalhos mais técnicos sobre literatura e autores. Agora, Valéria vai assumir uma coluna fixa aqui, uma vez a cada quinze dias, sempre nos sábados. Nas colunas, textos sobre artes, filmes, livros, poesias e mais. Bem vinda Valéria e muito obrigado por estar conosco.
“DESMUNDO”, 2003, filme de Alain Fresnot é surpreendente pelo modo e pela forma que se apresenta ao espectador. Esteticamente comovente, é plasticamente belo e agressivo; envolvente e rude ao extremo. Trata-se de um recorte histórico de um Brasil de 1570, mostrado de uma maneira como nunca foi mostrado: ficcional e verossímil, beirando ao épico e com traços intimistas desmascarando a mentalidade brasileira do século XVI.
A fábula tem como fio de prumo a história de algumas órfãs, enviadas pela Rainha de Portugal, com o objetivo de desposarem os primeiros colonizadores. A partir desse núcleo, Alain Fresnot inseriu um realismo grandioso através da plasticidade das imagens e do fluxo da memória, respeitando a diversidade linguística quinhentista: o hebraico, o nagô e o tupi explorados com naturalidade.
O filme nascido do livro homônimo de Ana Miranda, lançado em 1996, pela editora Companhia das Letras, é um contraste de gênero até então explorado por Fresnot.
O diretor manteve o tom antigo do texto de Ana Miranda, transformando os diálogos em 30 páginas de português arcaico fornecido pelo professor de linguística da USP Helder Ferreira sob a supervisão de Heitor Megale.
“O argumento trabalhava a dualidade entre ser íntimo, pequeno, e ao mesmo tempo um fiel espelho do século XVI, de início da colonização. Isto me interessou de cara. […] Depois de minhas duas comédias (“Lua Cheia”, 1989 e “Ed Mort”, 1997) em que trabalhei com personagens-funções, estava enjoado. Queria personagens que levassem a ação dramática”, afirma Fresnot.
O filme retrata o Brasil em seu passado português: as explorações e os massacres indígenas pelos jesuítas; a preocupação em garantir a pureza racial dos descendentes de portugueses e a moralidade local; o despudor religioso dos nativos ou seu canibalismo; os maus hábitos nativos; a grosseria dos gestos locais e a sujeira das cabanas.
O enredo centraliza-se em Oribella, uma portuguesa de treze anos, órfã que vem ao Brasil por imposição e se casa com Francisco Albuquerque, homem rude e grosseiro. Afastada de sua terra natal, de seus sonhos, de sua religiosidade, de seus costumes, a protagonista se choca com a realidade nua e crua apresentada pela nova terra. Fundindo o tempo cronológico e o psicológico dessa adolescente, o filme recupera o significado de ser mulher e o livre arbítrio de decidir a sua vida.
A narrativa é parcial, a trama se desenrola a partir do ponto de vista de Oribella. Sua travessia é de horror, sofrimento e de intimidade. Sua luta é individual e subjetiva, centraliza em seu “eu”, na “não aceitação” do seu destino e na luta por sua liberdade. Consciente de sua função como mulher nessa terra selvagem, a personagem se rebela contra o que lhe é imposto, tentando manter a sua dignidade, dividida entre o seu sonho (Portugal – utópico e espiritual, embora não lhe oferecesse muito), versus a sua realidade (Brasil – real e carnal, a nova terra que havia roubado o que ela tinha de mais precioso: o seu passado).
Durante sua trajetória, Oribella defrontará com pessoas estranhas e repugnantes. Além de seu marido que terá que se submeter sexualmente; uma cunhada doente; uma sogra que se assemelha a uma bruxa e uma índia que a alimenta, mas não conseguem se comunicar. Sua única saída é fugir daquele “inferno” e em uma de suas fugas Oribella encontra proteção e amor em um cristão-novo, Ximeno.
A direção de arte do filme foi assinada por Adrian Cooper, que ficou com a tarefa de recriar uma vila inteira (casas, comércios, igreja, ruas lamacentas), o que não foi uma tarefa fácil, visto que são poucas as fontes de pesquisa e as imagens que retratavam o Brasil daquela época, voltam-se com exclusividade aos temas religiosos.
Os métodos para construção do cenário, figurinos e do espaço interno doméstico contou com a ajuda de uma pesquisadora portuguesa que tinha acesso ao arquivo da Torre do Tombo, em Lisboa.
Evandro Mangueira
27 de julho de 2013
Valéria, seja bem vinda!!! Que bom ter uma coluna que possa nos orientar com opinião mais técnica sobre as artes (principalmente filmes, que amo).
Adhair
29 de julho de 2013
Gostei! Muito bom poder contar com esta fonte de informação.
Valéria Pisauro
30 de julho de 2013
Obrigada pelas palavras de carinho e vamos seguir com muita arte…
Abraços poéticos!
Clarence Price
10 de julho de 2022
Great blog I enjoyyed reading