Os “filhos” e as “criaturas”. Por Luis Fernando Amstalden

Posted on 30 de outubro de 2013 por

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Parte de uma família que conheço se converteu a outra religião, e a maior parte ficou na religião original. O problema é que a conversão está causando conflitos. A parte que se converteu, está numa denominação cristã que afirma que aqueles que não pertencem ao seu grupo, não são “filhos de Deus”, mas “criaturas de Deus”. Ocorre que, então, os “filhos” não podem conviver com as “criaturas”, uma vez que estas últimas são “ímpias”, pecaminosas e, com certeza, destinadas ao inferno. A família então se divide. Não freqüenta mais as mesmas festas, não se vê nos feriados e nem mesmo se visita mais.

Eu não sou teólogo, mas conheço alguma coisa de religiões. E, no meu entender, a menos que eu tenha lido e interpretado muito erradamente os Evangelhos, esta divisão entre “filhos” e “criaturas” é uma aberração dentro da proposta ética do cristianismo. Aliás, é uma aberração frente à proposta ética de outras religiões não cristãs também. Não vou aprofundar este tema do ponto de vista religioso, porém tenho duas considerações básicas sobre o fenômeno. A primeira destas considerações é a de que, infelizmente, o que acontece com a família desta moça não é fato isolado e tampouco específico de uma religião. Ao contrário, o mais comum é encontrarmos em todas as religiões o mesmo problema: uma “distinção” entre o “salvo” e o “não salvo”, o “ímpio” e o “pio”, o “pecador” e o “puro”. Nos meus anos de adolescência, quando participava de grupos religiosos católicos, pude observar de perto este fato entre os  católicos. Alguns, que ajudavam nas liturgias ou cantavam em coros, colocavam-se num grau distinto dos demais, reivindicando claramente ou veladamente, sua superioridade e sua autoridade sobre os assuntos religiosos, de administração da paróquia e até em relação a vida pessoal dos demais. Um destes “salvos” veio me repreender certa vez porque eu havia convidado um professor para fazer uma palestra ao nosso grupo de jovens. O professor não era católico, mas ele não foi nos falar sobre religião, e sim discutir profissões. Para o “santo” de minha paróquia, no entanto, o convite estava “errado”…

Se você prestar atenção, verá que em todas as religiões o fenômeno se repete, seja entre cristãos, hindus, muçulmanos e até entre grupos auto proclamados “alternativos” em termos de espiritualidade. E isto nos leva a minha segunda consideração: embora eu entenda este tipo de divisão como parte da construção da identidade social e pessoal dos membros de uma ou outra religião, considero este fenômeno algo perigoso socialmente. Ocorre que no momento em que divido as pessoas entre “filhos” e “criaturas”, por exemplo, estou criando uma situação de superioridade para os “filhos” e inferioridade para as “criaturas”. Os superiores então, podem discriminar os inferiores. Podem menosprezá-los, evitá-los e, no limite, até prejudicá-los, uma vez que as “criaturas de Deus” não têm o mesmo status dos “filhos” e nem a sua nobreza, não tendo, portanto, os mesmos direitos.

Alguém  pode argumentar que não é assim. Que aqueles que são “puros” ou “salvos”, somente sentem “pena” dos “ímpios” e, diante desta pena, deste reconhecimento da inferioridade dos “pecadores”, tendem a tratá-los com paciência e tolerância, e até, talvez, trazê-los à “verdade”. Mas será que este comportamento de “paciência e tolerância” realmente ocorre? Talvez um ou outro “fiel” seja, de fato, paciente e tolerante, mas quem o é, é exceção e não regra. Quando os portugueses e espanhóis dominaram as Américas, massacraram e roubaram os povos daqui. A justificativa era o fato dos ameríndios não serem cristãos, não estarem na “graça divina”. Não eram “filhos” e sim “criaturas”, logo os cristãos conquistadores poderiam dispor dos bens e até da vida dos não cristãos. E este é somente um caso. Ao longo da História, poderíamos citar muitos outros. O resumo é que a consideração de si próprio como alguém espiritualmente correto e, em contrapartida, daqueles que não pertencem à mesma fé como “incorretos”, leva, inevitavelmente, a distinção entre os que têm direitos e os que não têm. Entre os que devem imperar porque pertencem à “verdade” e aqueles que devem se submeter porque vivem no “erro”. E a consideração de que alguns devem reinar e outros devem se submeter, é sempre o início da ditadura, da opressão e da violência.

Pertencer a uma religião pode ser uma coisa extremamente positiva. Pode levar um indivíduo a viver melhor, a buscar a justiça e a harmonia. Mas se este indivíduo ou a própria religião passa a distinguir e discriminar entre aqueles que são seus “irmãos” e os que não são, então a religião perde seu efeito harmônico e leva ao conflito. Terá sido esta a intenção dos fundadores das grades religiões, como Cristo, por exemplo?

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