O gesto e o Natal. Por Luis Fernando Amstalden

Posted on 24 de dezembro de 2013 por

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drummond frase

Vinte de dezembro passado. Por necessidade, eu tive que ir ao centro da cidade de carro. Obviamente acabei “preso” no trânsito que não fluía. Estacionar então, apesar do que a privatização da Zona Azul “promete”, estava muito difícil. Dando voltas lentas no entorno de onde queria ir, minha irritação crescia. Não só a minha, mas a dos outros também. Todo mundo tinha pressa, todo mundo queria estacionar, todo mundo queria andar rápido e chegar ao seu destino e todo mundo se irritava. E, no entanto, cada pressa individual, cada irritação pessoal, só piorava as coisas. Ninguém cedia a passagem e todos competiam pelas vagas, pelos espaços de trânsito. Os próprios pedestres, igualmente irritados e apressados, atravessavam fora das faixas e distribuíam olhares carrancudos para os motoristas que terminavam por chegar perigosamente perto dos transeuntes.

Depois de várias voltas naquele ciclo de tensão, eu estava de péssimo humor Amaldiçoava internamente o trânsito, os demais motoristas, os pedestres, os carros, as ruas e até as Festas, responsáveis por tanta gente se movimentando. Da forma como os demais passavam por mim, sem olhar ou olhando feio, provavelmente a raiva havia se tornado coletiva. Foi então que, a minha frente, um casal entra em um carro estacionado. Parei imediatamente, esperando que eles estivessem de saída e liberassem a vaga para que eu, finalmente, pudesse estacionar e fazer o que precisava. Às minhas costas, a fila parou, longa e impaciente. E não sei se por reflexo de minha própria tensão ou por fato real, eu praticamente sentia a impaciência e a raiva também atrás de mim. Os segundos que o casal levava para abrir se carro e se ajeitar, pareciam horas. Eu me irritava mais e pensava na raiva alheia, formando um ciclo vicioso. Você já deve ter vivido isto. Esta sensação de que as pessoas estão demorando demais e isto é pessoal, que elas estão fazendo de propósito já que você está com pressa. Bem, foi o que eu senti. E o casal demorou um tantinho a mais mesmo. Eu pude ver o motorista procurando algo no painel e isto só fez minha raiva geral aumentar. Será que ele não poderia procurar o que estava buscando depois? Ele não via como o trânsito estava? Não via que eu bloqueara a rua esperando a vaga? Senti, naquela minúscula demora, uma ofensa pessoal, uma demonstração de poder daquele que tinha a vaga em relação a mim, que não a tinha…

Minhas sensações chegaram ao auge, naqueles poucos segundos, quando a porta do carro se abriu e o motorista saiu. Pronto, pensei. Eles vão voltar. Não vão liberar a vaga. Eu esperei em vão. Devem estar se divertindo com minha dificuldade. Engatei o carro e já me preparava para sair. Tenho certeza de que sairia, inclusive, em uma velocidade maior do que deveria. E provavelmente iria assustar os pedestres à frente, alimentando o ciclo de tensão. O motorista do outro carro, no entanto, saiu sozinho. E antes que eu pudesse sair, chegou com um sorriso até a janela do meu carro. Sem uma palavra, me estendeu o ticket de estacionamento que havia usado. Havia ainda mais de uma hora de prazo, e ele se lembrou de passar aquele tempo a alguém que pudesse usar. Fiquei tão surpreso e envergonhado do que sentira e pensara até ali, que mal balbuciei um agradecimento. Ainda sorrindo ele voltou a seu carro e se foi. E eu pude estacionar.

Ainda cheio de vergonha, estacionei e acabei por esquecer um pouco a pressa. Sentei-me num banco da praça e fiquei pensando naqueles minutos e no gesto do outro motorista. Lembrei-me que nunca antes eu havia feito o gesto de partilhar um ticket, mesmo que houvesse ainda muito tempo a vencer nele. Lembrei do que pensei sobre o casal. De repente, junto com minha vergonha, tudo ficou mais leve. Não é entrando na irritação, na raiva, na impaciência, que eu iria me sair bem. Ninguém iria ou vai. Só quebrando este ciclo com um gesto pequeno, de partilha, de solidariedade, de comunidade, é que eu poderia ser feliz. E isto seria, da mesma forma que a irritação, “transmissível”. Aliviara a minha tensão e, agora, eu também aliviaria a de outros, sendo mais paciente, mais gentil e mais solidário.

E me ocorreu que este é um dos significados profundos do Natal. Quebrar o ciclo do individualismo, do egoísmo, da impaciência e da incompreensão que vivenciamos durante o ano todo. Seja você religioso ou não, cristão ou não, o fato é que um gesto de generosidade muda o ambiente a sua volta. Para o cristão, a maior generosidade é o nascimento do Cristo, Deus feito homem, como uma doação para a humanidade. E a despeito do que esta festa se tornou, comercial e materialista, a mensagem persiste. Doar, quebrar os modelos de força, de competição e assumir a empatia, a solidariedade, transforma o mundo.

Feliz Natal e que você e todos nós, independente de nossas crenças, nos lembremos de “mudar o mundo” durante todo o ano que virá, através de nossos gestos de doação.

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