Poucos artigos publicados neste Blog geraram tanta polêmica quanto o “Rolê dos Indesejáveis”, postado na última quarta feira. E ainda vai ser objeto de mais, até por que, pretendo voltar à discussão. O fato, no entanto, é que a ida dos grupos mais pobres ao shopping não é uma novidade, nem o seu fascínio (como de toda sociedade) por estes lugares. Na década de noventa, o grupo Mamonas Assassinas, já brincava com este fascínio e até usava o termo “rolezinho”. Parece só brincadeira deles, mas algumas frases como: ” a minha felicidade é um crediário nas casas Bahia” e “quanta gente, quanta alegria…” me parecem irônicas em relação ao espaço e ao que este espaço promete: felicidade para todos, mesmo que seja em suaves prestações.
Bom Domingo.
Amstalden
Evandro Mangueira
26 de janeiro de 2014
Os mamonas!!! Quando eu digo que gosto deles, quase posse ouvir os pensamentos dos mais cultos trucidando-me.
Evandro Mangueira
26 de janeiro de 2014
“Posso” *
blogdoamstalden
26 de janeiro de 2014
Sei não, Evandro, mas acho que, hoje, perto de algumas outras músicas/grupos que tem por aí, os “mais cultos” também AMAM os Mamonas Assassinas…
Júlio Amstalden
27 de janeiro de 2014
Bem, como o tema do artigo passado foi bastante polêmico e o vídeo postado aqui relaciona-se bastante com meu objeto de pesquisa, venho novamente comentar. Fez cócegas!
Norbert Elias, sociólogo alemão, tem um interessante estudo realizado a quatro mãos com John Scotson em uma comunidade urbana nas proximidades de Leicester, Inglaterra, na década de 1960. Este estudo chama-se “Os estabelecidos e os outsiders” (São Paulo, Zahar, 2000) e descreve o cotidiano de Wiston Parva, nome fictício dado à comunidade por razões éticas. Wiston Parva tinha à época aproximadamente 5000 habitantes e os autores estudaram três bairros da cidade: um residencial ocupado por homens de negócios, um bairro operário e antigo considerado “respeitável” e um outro, igualmente operário, mas mais recente e considerado de má reputação. No entanto, apesar das famas opostas, ambos os bairros operários tinham características muito parecidas, sendo que apenas algumas famílias causavam problemas no bairro de má fama. Em um prefácio à edição alemã de 1976, o próprio Elias escreve a “divisão marcada entre um grupo instalado a longa data e um outro de residentes recentes, que são considerados como marginais ou intrusos, pelos primeiros. Os membros do grupo instalado se uniam contra eles, e de uma maneira geral, estigmatizavam-os como pessoas sem o menor valor humano, pois parecia lhes faltar a virtude humana superior – do carisma coletivo distintivo – que os primeiros atribuíam a si mesmos (…) Estes mesmos recém-chegados, ao fim de certo tempo, pareciam admitir, como uma espécie de resignação, que eles pertenciam a um grupo de virtude e de respeitabilidade menores – o que não era justificado por seu comportamento, excetuando-se um pequena minoria”.
Bem, o texto de “Chopis Centis” diz:
Eu dí um beijo nela e chamei pra passear.
A gente fomos no shopping, pra mó di a gente lanchá.
Comi uns bicho estranho, com um tal de gergelim.
Até que tava gostoso, mas eu prefiro aipim.
Quantcha gente,
Quantcha alegria,
A minha felicidade
é um crediário
nas Casas Bahia.
Esse tal Chopis Centis é muito legalzinho,
prá levar as namorada e dá uns rolêzinho.
Quando eu estou no trabalho,
não vejo a hora de descer dos andaime
prá pegar um cinema, ver Schwarzeneger
também o Van Damme.
Quantcha gente,
Quantcha alegria,
A minha felicidade
é um crediário
nas Casas Bahia.
Além das menções de estranhamento a um universo diferente e do desejo de consumo refreado, motes da postagem, é sugerido que o eu-lírico falante no texto é um nordestino. Confronte-se os termos: “aipim” (nome pelo qual a mandioca é mais conhecida no nordeste) e “Quantcha” (muitos nordestino têm essa pronúncia). Além disso, faz alusão ao trabalho típico dos nordestinos em São Paulo: a construção civil (“não vejo a hora de descer dos andaime”), o “peão-de-obra”.
É interessante, porque o conjunto os “Mamonas” era formado por jovens de classe baixa de Guarulhos, operários da indústria local. Muitos jovens pobres e de chances limitadas procuram a música ou o esporte como formas de ascensão social. Há diversas bandas de garagem (como eles foram nos primórdios) querendo ingressar no “show business” e garotos sem chuteiras tentando jogar nos grandes clubes, almejando uma carreira de virtuoso do esporte. Todos apostam no sucesso, embora lidando com um alto grau de incerteza e com formas seletivas da indústria cultural e esportiva, das quais não têm consciência. O fenômeno detectado por Elias manifesta-se aqui também, pois os jovens de os “Mamonas” eram pobres, mas estabelecidos há mais tempo no território do que os pobres “intrusos” nordestinos, de uma cultura diferente que, sob o modo de ver preconceituoso, tornam-se quase como que desqualificados como seres humanos. A violência não é física, mas antes psicológica. A descrição de Elias aqui cai como uma luva.
Os “Mamonas” tanto expressaram seu próprio universo quanto riram de outros pobres. Seu sucesso, ironicamente, durou apenas um ano.
Marcelino Agostini
29 de janeiro de 2014
Caro Julio, muito bem colocado o seu comentário, bem como é muito interessante o estudo citado. É evidente que há, sim um preconceito entre as classes, e eu diria mais, não é unilateral. Falo por vivência que a classe dita como “rica” também é mal vista pela classe “pobre”. E, em ambos os lados da história, há acertos e erros na forma de se enxergar o “oposto”. Não se pode afirmar que todos os “ricos” são arrogantes e conquistaram sua riqueza sem muito esforço, nem que os “pobres” são ignorantes, acomodados ou propensos ao crime. Mas torno a dizer, como já abordei em comentário da outra publicação, que essa problemática dos “rolezinhos” (sim, permita-me chamá-la problemática, pois o é no meu ponto de vista) não é uma questão de preconceito, mas de crítica à desordem e baderna, e também à incapacidade dos administradores de Shopping em conter os eventuais abusos. E há, sim, muitos abusos. Recomendo que leia o meu comentário no texto “O Rolê dos Indesejáveis”, no qual abordo mais profundamente isso, citando como exemplo o próprio Shopping da minha cidade.
Entendo que há um preconceito da mídia em torno da questão, e isso foi perfeitamente ilustrado no texto publicado nesse Blog 3 dias após esse (O Rolê da Elite). É curioso como a mídia se silencia quando ocorrem atos de vandalismo, violência e baderna por parte de jovens de classe média-alta. Aliás, gostaria de ir mais além: os grupos (ou “tribos”, como gostam de ser chamados em Piracicaba) que se concentram nos finais de semana próximos a um dos acessos ao Shopping não são exclusivamente de “pobres”. Há muitas dessas tribos formadas por jovens de classe média-alta. O que muda de uma classe para outra é o tipo de incidente: assaltos geralmente são atribúidos a grupos de classe baixa, e aos de classe alta se atribuem atos de vandalismo e depredação, além de violência praticada contra tribos “rivais”. E sinceramente, acho mais condenável e plenamente injustificável quando esse tipo de atitude parte de um grupo de classe média-alta. Ele, que têm acesso mais facilitado à educação de qualidade, à informação, além de não precisarem sacrificar os estudos para trabalhar ajudando na renda familiar, deveriam ser exemplos, e não é o que se vê. Sou plenamente contra a ideia de que jovens da classe baixa que praticam delitos, o fazem por culpa do Estado e de suas condições de vida por vezes precárias. O caminho do crime e da violência é opção, não consequência. Errado não está quem critica os “rolezinhos”, mas quem ignora os “rolês da elite”.
Só para concluir, não sou fã número um dos “Mamonas Assassinas”, mas vejo “Chopis Centis” como uma brincadeira com viés crítico, jamais preconceituosa. Caso o fosse, eles certamente não teriam “arrastado multidões”. E não vejo ironia alguma no fato da o sucesso deles ter somente durado um ano. A carreira do grupo foi abreviada por um trágico acidente que vitimou seus integrantes. Ou será que você vê algo de irônico na morte de pessoas que não compartilham de sua forma de pensar e agir? Eu me arrisco a dizer que, não fosse a queda daquele avião, eles poderiam estar na estrada até hoje, arrastando multidões, e alheios às críticas precipitadas.
blogdoamstalden
31 de janeiro de 2014
Excelente, Júlio. Estou orgulhoso e desconfiado, ao mesmo tempo, que vc. está virando sociólogo… Mas, tem algo que não sei dizer. Será que os mamonas riram dos outros ou de si mesmos? A mim faltam dados para esta afirmação. Talvez, e só talvez, eles tenham sido apenas irônicos com tudo, meio farristas. Críticos mais pelo riso e sem grande profundidade, porém divertidos. Acho que nunca vamos saber…
Júlio Amstalden
27 de janeiro de 2014
Continuando a polêmica, Norbert Elias pode ser aplicado igualmente no caso da irritação da classe média com os praticantes dos rolezinhos: os habitués dos shoppings seriam os estabelecidos, enquanto os jovens das periferias seriam os outsiders. A difamação impingida pelos primeiros aos segundos vem sob o conceito de serem preguiçosos, baderneiros, arruaceiros…enfim,todas as desvirtudes opostas aos carismas da classe media. Os meios de comunicação em massa encarregam-se de veicular as difamações, sem que necessariamente elas tenham ocorrido.
Por último, do ponto de vista dos nordestinos, embora com as possibilidades de consumo negadas, reduzidas ou parceladas em crediários de lojas populares, deslumbram-se com a ilusão de felicidade esfuziante oferecida pelas lojas. Um velho amigo, parente distante e frade capuchinho que morava em uma favela de Piracicaba, tentou certa vez explicar a motivação que trazia tantos migrantes para morar num lugar fétido, sem água encanada, esgoto ou eletricidade: a simples proximidade dos outdoors faiscantes, dos cinemas e comércio funcionava como compensação às suas duras condições de vida, pois em seus lugares de origem a pobreza era tão intensa que nem a hipótese de consumo podia existir.
blogdoamstalden
31 de janeiro de 2014
Esta parte do comentário é brilhante. Parabéns.