“Deixo a vida para entrar para a história”, se eu fosse o Getúlio essa frase faria sentido, mas se fosse para usar as últimas palavras de alguém, usaria a de Tiradentes: “Se dez vidas tivesse, dez vidas eu daria!”
Parte porque me foi tirada a vida, em número tão grande ou maior que dez vezes, parte porque se tivesse eu, de fato dez vidas, dá-las-ia! [português, língua deformada].
O Sr. Bilbo, um hobbit, compara a sua vida longa a uma fatia de pão com pouca manteiga na frase: “como manteiga que foi espalhada num pedaço muito grande de pão.”
E é exatamente assim que me sinto, como se a manteiga já não fosse suficiente para chegar ao fim, e com uma velha faca tento empurrar um pouco mais adiante.
Para quem espera gratificação pós morte, vá lá que faça sentido tudo isso, pois ao fim de uma indigesta refeição, é bobagem esperar por uma farta sobremesa, como disse o Dedo Torto, no filme A excêntrica família de Antônia: “(…) É absurdo crer que a dor constate que nos aflige seja apenas momentânea. Pelo contrário: a desgraça é a regra e não a exceção. A quem culpar por nossa existência? A explosão solar que nos deu a vida? Eu me acuso, já que não creio em Deus ou reencarnação, se acreditasse poderia me iludir de que a vida nos promete uma divina sobremesa após uma indigesta refeição. Não quero mais pensar, acima de tudo não quero pensar”
Essa última é o que me toma, como sendo humano, a vontade de irracional ser tornar-me, seria útil, e talvez eficaz, não pensar. A dor que alimento vem, se não com certeza, mas muito provavelmente, do cérebro que é ferramenta de criação de ideias e sugestão exaustiva do pensamento.
Essa ferramenta, além do polegar opositor, que nos diferencia dos demais mamíferos primatas, infeliz seleção natural de Darwin, eu trocaria meu polegar opositor por uma vida bucólica em alguma árvore, com estimativa de 13 a 15 anos. Seria um primata mais feliz. Contudo, sobrevive quem melhor se adapta.
A felicidade, segundo Danuza Leão, sim aquela mesma que foi modelo na década de 50, consiste em uma péssima memória, uma vez que se esquecendo, não se guarda rancor, e para uma modelo ela é bem sábia. Há quem acredite que modelos só saberiam falar do pequeno príncipe. [Esse preconceito não é meu, não mesmo!]
Pois a Danuza nos ensina mais, ela diz, em um dos seus livros, que quando alguém se esquecer do seu aniversário, o melhor a fazer é você mesmo ligar para a pessoa e dizer: “Não vai me dar os parabéns, não?”, dessa forma toda a problemática por trás desse esquecimento some, e você fica livre para fazer outras coisas durante o dia, ao invés de remoer, em pensamentos, o fato de terem esquecido data tão importante e significativa. Convenhamos, essa data só importa a você, afinal as rugas são suas.
Nascemos em uma data tão comum como todas as outras que viveremos, no entanto a regra é clara: O dia do aniversário deve ser comemorado com muita comilança, pois se comemora a vida. Vida, direito inalienável, garantido na constituição, pelo artigo 5º, que diz:
“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade…”
Óbvio que ninguém considera que a vida tenha o mesmo valor da propriedade, todos sabemos, historicamente, que a propriedade vale mais. Sempre valeu! Dividimos a humanidade em servos e senhores, escravos e proprietários, funcionários e patrões, em um esquema muito bem elaborado, onde o direto a propriedade é protegido, muito bem protegido, seja por cercas elétricas, seja pelos tribunais.
O direito a vida é assegurado e inviolável, assim como o direito a propriedade. No entanto, no entanto mesmo, é apenas um direito. Não, não uma obrigação! A dignidade humana consiste, acima de tudo, na escolha de como se viver e de como deixar de viver. É natural que o “além vida” assuste, senão como teríamos cinemas? Ou Igrejas?
Para os que esperam uma mesa com os doze apóstolos (há quem diga que Madalena estará lá, há quem diga que Judas estará lá, em todo caso, consideraremos doze, para efeito poético), a vida pós a morte seria reconfortante, mas aos que esperam apenas a paz, a tranquilidade e a dignidade de apagar, dormir o sono eterno, desfazer-se em pó, retornar as origens da terra, regressar a base das reações químicas, e sossegar o pensamento, esses, certamente, não precisam sofrer com a dor da espera da vontade de Deus ou do Estado.
A morte digna é um direito, deveria ser garantida pelo Estado.
E o inferno que atormenta a todo suicida, não assusta? Mas, isso também não é um direito de escolha? Afinal, poderíamos ser eternos, mas o todo poderoso Javé deixou os humanos Eva e Adão escolherem comer do fruto, quem somos nós a condenar as escolhas, somos os degradados filhos de Eva!
Filhos condenados a comerem do suor dos seus rostos.
Por que somos obrigados a caminhar tortamente quando se deseja apenas descansar?
A Eutanásia é um golpe de misericórdia, a última dignidade a se escolher em vida, principalmente se a pessoa que deseja ter tal fim, deseja por sentir dor e angustia em graus tão altos que seria incapaz de descrevê-los nesse texto.
O Centro Dignitas (http://www.dignitas.ch), que pratica a morte assistida*, é uma referência mundial, localizado na Suíça. Um ótimo lugar para se visitar pela última vez na existência, o custo gira em torno de quinze mil reais, valor muito baixo comparado aos custos hospitalares para quem se encontra em fase terminal, ou sofre sem esperança de melhoras.
Não, não, não estou fazendo apologia à morte, nem ao suicídio, [até porque isso é crime no Brasil] lembre-se, esta carta é minha, a agonia é minha e intransferível! Garantindo apenas a dignidade de minha morte no mesmo nível que garantida é a minha vida pela constituição.
Quando não possuir mais forças, e meu cérebro já não reconhecer todas as pessoas que amo, ou se por ventura, da cama não conseguir ir ao banheiro sozinho e isso for irreversível, ou ainda, sentindo dor e protelando-se o sofrimento, a base de remédios e da misericórdia alheia, farei uma linda viagem à Suíça e comerei do melhor chocolate que lá for vendido.
Gostaria de passar o meu último dia de vida na terra que tem palmeiras, onde canta o sabiá, mas os políticos dessa terra são conservadores e o direito a vida é unilateral!
Morte assistida é uma questão de dignidade.
* Morte assistida é quando o coquetel é preparado pelos médicos, mas o paciente bebe o coquetel sozinho, sendo apenas assistido pelos médicos; Eutanásia é o recurso médico, onde o especialista aplica a porção letal.
** Michèle Causse (1936-2010) era tradutora e autora. Ela estava sofrendo de uma doença óssea não-letal e decidiu acabar com sua vida com a ajuda de uma organização do suicídio assistido. O suicídio assistido é legal na Suíça.
Evandro Mangueira é Escritor, autor do livro Arcanjo Gabriel
Edu Pedrasse
24 de fevereiro de 2014
“Death is for the living and not for the dead so much.”
Errol Morris – Gates of Heaven
Evandro Mangueira
24 de fevereiro de 2014
Em certa ocasião, li (ouvi, não sei ao certo) que o velório é a comemoração dos que sobreviveram ao morto!
Antonio Carlos-
24 de fevereiro de 2014
Penso que na verdade todos nós almejamos viver eternamente. Ninguém quer morrer, seja de repente ou lentamente.Portanto, vivamos com intensidade cada momento e quando a morte vier nos encontrará vivos e assim continuaremos.
Evandro Mangueira
24 de fevereiro de 2014
Antônio Carlos, muito poético o seu comentário. Eu vejo a morte com muita tranquilidade. Acho que com a mesma tranquilidade que vc percebe a vida eterna. Obrigado pela colaboração!
Eduardo Stella
24 de fevereiro de 2014
Dizia Raul … “vem mas demore a chegar … morte … morte … morte que talvez seja o segredo dessa vida”
Boa reflexão que o Evandro trouxe!
Claro que sou favorável e todo tipo de liberdade … não poderia ser diferente com a eutanásia. Porem, só depois de uma avaliação psiquiátrica intensa, pois é uma decisão que não tem volta.
Evandro Mangueira
24 de fevereiro de 2014
Sim Eduardo Stella, além de interesses de herança! Temos que tomar cuidados jurídicos!
Essa música de Raul é quase uma poesia:
“Oh morte, tu que és tão forte,
Que matas o gato, o rato e o homem.
Vista-se com a tua mais bela roupa quando vieres me buscar”
Carla Betta
24 de fevereiro de 2014
O texto está super bem escrito! Mesmo! A linha lógica conduz à conclusão presumível. Mas, discordo das premissas. Assusta-me esta visão tão reducionista do homem, de sua missão na Terra e dos objetivos de sua existência. Respeito quem assim pensa, embora continue a me assustar.
Evandro Mangueira
25 de fevereiro de 2014
Pois é Carla, eu não creio que somos muito além do caos e acaso.
Acho que as pessoas como eu, tem o direito de escolher viver ou não em circunstâncias de dor. Mas claro que as que acreditam que a dor transforma, salva ou liberta, eu também respeito.