1970.
O Beatles tinham acabado. Hendrix e Joplin morreram. Um negro foi assassinado no Festival de Altamont pelos seguranças dos Stones.
O mundo vivia uma ressaca da Contracultura, do movimento Flower-Power e da cultura Hippie.
E Lennon?
Lennon tinha acabado de sair de um vício de heroína, de um final amargo e conflituoso com os Beatles, se envolvendo em dezenas de protestos e ativismos políticos. E perturbado como sempre.
Todo mundo queria saber o que o gênio ia fazer agora.
Será que iria ficar fazendo aquele som experimental “com aquela japonesa maluca” como já tinha lançado no disco Two Virgins ou The Plastic Ono Band- Live in Toronto?
Não. Lennon fez o que toda pessoa sábia faz quando não está bem da cabeça. Foi ser tratar. Voou para nova York e começou a fazer a Teoria do Grito Primal – que pregava entre coisas o reviver das dores do passado e sua liberação através…do grito.
Parece que funcionou. Logo voltando para Londres, chamou alguns velhos amigos para gravar: o baixista Klaus Voormann e….o velho Ringo Star. Sim, eles dois se davam bem ainda.
O Lp é feito de músicas que escancaram a alma e as dores de Lennon. Possivelmente nenhum artista antes tenha se exposto nas letras, na voz, de um jeito tão confessional. Soltou seus demônios. Ou melhor, assumiu-os para depois expulsá-los.
Instrumentalmente é um disco básico, gravado de um modo cru, no mesmo espírito que quando nos abrimos com um velho amigo: direto. O grande Ringo, educadíssimo como sempre, executa uma bateria minimal, precisa e com pouquíssimas notas, deixando um espaço enorme para Lennon. Sensibilidade de poucos… Klaus Voormann segue na mesma linha. Lennon toca piano, violão e guitarra. Temos as participações sutis em duas faixas: os pianos de Billy Preston e Phil Spector.
O som do disco é roto, a produção e mixagem foram feiras pelo próprio Lennon, que não se importou muito em realizar os arranjos elaborados que fazia nos Beatles. Os arranjos têm poucos elementos, deixando espaço para o alvos principais: as composições de Lennon e a catarse das mesmas na sua voz.
E temos dor. Muita dor.
Na faixa de abertura, “Mother”. Lennon chora e acusa os pais sobre a sua infância solitária – ele foi criado pela tia. Aí já vemos os efeitos da teoria do grito primal, com Lennon assustadoramente berrando no refrão, como se estivesse sofrendo um aborto. E sabiamente ressalvou no seu primeiro show no Madison Square Garden, após o lançamento do disco: “Essa música não só para meus pais, é parar 99% dos pais”.
Lennon sempre gostou de um rock bem “pegado”. Mas neste disco são poucas intervenções mais pesadas. Ela posa de bluesman no início das músicas “I Found Out” e “Well, Well, Well”, para depois entrar na porrada na parte dos refrões. Aliás, para quem subestimava John como guitarrista no Beatles, aí pode vê-lo em toda sua graça: economia, timbres bem escolhidos, soluções eficientes. A guitarra é pesada e agressiva sem brigar com a voz. Profeticamente ele já colocava no ar a estética punk e indie.
Nos Beatles Paul era conhecido como o homem das músicas suaves e românticas, enquanto Lennon era mais ácido. Mas quando queria ser suave e doce não sobrava pra ninguém. A doçura de John vem sempre misturada com um melancolia profunda, o que torna suas baladas verdadeiras agulhas, que pegam o ouvinte em todas as direções. E neste Lp, devido ao difícil momento que passava, sobram canções “de recolhimento”, reflexão e amor.
Ainda em Lua de Mel com Yoko, John lança na segunda faixa a cálida “Hold on” um conselho para que ele e a esposa segurem a barra do momento. Interessante os motivos de música japonesa na melodia e na guitarra da primeira parte. Rosas para a esposa.
Working Class Hero é outra balada, com Lennon sozinho ao violão, criticando pesadamente o modo de vida suburbano e acomodado das pessoas. É de uma amargor e beleza atroz: “Keep you doped with religion and sex and TV / And you think you’re so clever and classless and free “(Mantem você dopado com religião, sexo e TV / E você acha que é tão inteligente, inclassificável e livre)
Na linha baladas ainda temos as delicadíssimas “Love” e “Look at Me”, elegias ao amor. Letras aparentemente tolas falando coisas profundíssimas.
Love is free, free is love O amor é livre, livre é o amor
Love is living, living love Amor é viver, viver o amor
Love is needing to be loved O amor é a necessidade de ser amado
Depois as duras Isolation – sobre o seu medos e de Yoko- e Remember, em uma breve alusão à Conspiração de Pólvora na Inglaterra, uma conversa com Guy Fakes, aquele cuja máscara de bigode foi tão banalizada nas má-nifestações de rua no Brasil.
O disco acaba com uma bomba de 100 megatons: GOD
Lennon manda todas as religiões, líderes e mártires para o espaço, da forma que só ele sabia fazer.
“God is a concept, “by which we measure our pain.” (Deus é um conceito pelo qual medimos nossa dor)
P.S. Pra alguém não vir me falar que o disco tem ainda mais uma faixa no final, tem sim. Mas é quase uma “ghost track”, música incidental (1m1s). O famoso som “de radinho”, que viria a ser usado muuuuuuuuito depois pelas bandas descoladas já estava lá: My Mummys Dead.
Ave Lennon.
Love
Edu Pedrasse é músico profissional – guitarra e violão – há 28 anos. Possui Bacharelado e Mestrado em Música pela UNICAMP. É professor universitário na UNIMEP, no curso de Música Licenciatura e também é professor particular de música. Atua com seu show Entartete Jazz, nas casas de espetáculos de Piracicaba e região.
Site: www.edupedrasse.com
Facebook: https://pt-br.facebook.com/edupedrasse
blogdoamstalden
4 de março de 2014
Excelente, Edu. Suas análises tem que virar um livro. Grato por você ser um dos colunistas deste Blog.
Edu Pedrasse
5 de março de 2014
Eu que agradeço, pelo espaço que me concedes neste Blog. Grande Abraço
fabiocasemiro
5 de março de 2014
Edu Pedrassi é músico competentíssimo e essa qualidade transparece em seus textos. Já repararam como a forma literária dialoga com a música que comenta? Produzir textos nos quais a forma e conteúdo se alimentam é mais que mera informação: é literatura (e das boas!). Esse diálogo forma/conteúdo está escancarado, principalmente, no texto que ele produziu sobre Chet Baker. Neste, o fenômeno se repete: Edu possui a capacidade de alfinetar o contemporâneo usando o passado como luvas de pelica. Sua crítica é viva, porque quer mostrar a música (mesmo a do século passado) em sua extemporaneidade artística.
Semanas atrás tive oportunidade de discutir isso em nossas aulas de guitarra… E não é que a aula surgiu da forma/conteúdo do texto? É o silêncio que recorta e transforma o ruído em música. Edu Pedrassi encabeça esse projeto hercúleo de transformar minha guitarra barulhenta em papa fina… Sorte minha ter, mais do que um professor de música, um Orientador da sensibilidade!!!
Estou aqui a escutar o disco de Lennon… Em poucas semanas Edu comentou as criações de Lennon, Elis, Chet Baker, Legião Urbana… Nos mostrando que a beleza da música está sempre para além dos gêneros, muito além dos rótulos….
Mais do que paradigma de músico profissional, Edu vem nos dando aulas sobre criação textual….
Sorte nossa termos alguém assim ao lado!
Há que virar livro mesmo, Amstalden!
Valeu Luís Amstalden por garimpar o colunista!
Valeu Edu Pedrassi pelas aulas de sensibilidade musical e de escrita, dedicadas a todos nós leitores do Blog do Amstalden!
Abraços!
Fábio H.
Paulo Fessel (@Szarastro)
7 de março de 2014
Faltou falar de “Isolation”… Essa música me marcou num período difícil de minha vida e ajudou a superar o ódio que senti de uns e outros. Os versos
I don’t expect you to understand
After you’ve caused so much pain
But then again, you’re not to blame
You’re just a human, a victim of the insane
(Não espero que você entenda
Após ter causado tanta dor
Mas novamente, você não pode ser culpado
Você é só um humano, uma vítima dos insanos)
são um hino ao perdão, algo que inclusive tá meio fora de moda, hoje em dia.