— Sempre foi assim professor?
— Sim. Sempre foi assim.
Tínhamos ido fumar um cigarro lá fora, no intervalo da Faculdade, e algum mentecapto passou de carro com o som estourando. E atiçou a melancólica pergunta de Johnny-O.
Continuei.
— Nos anos 80 não havia toda a tecnologia de hoje, o pessoal colocava o famoso equalizador TOJO, carcava a mão nos graves, e além dos falantes normais do carro, mandavam pôr a lendária “caixa de 12” no porta-malas. Opalas e Passats tremendo a terra. Hoje, com toda modernidade, a coisa chega a níveis de Armagedon.
Ah…os GRAVES.
Os graves são uma entidade.
Os graves estão ligadas à voz masculina. E à masculinidade por conseguinte. Falando em masculinidade a coisa perigosamente espraia-se por territórios mais bizarros possíveis. Desde o indivíduo de voz grossa, (que todo mancebo adoraria ter) e por qual a maioria das mulheres – ainda – suspira e os homens têm mais respeito, até toda simbologia e reações psicofísicas que ela denota.
A voz do grande sábio ou do grande vilão do filme é quase sempre grave. Os locutores de rádio quase sempre são escolhidos por este critério. Quando o garoto está mudando de voz-para mais grave – os pais ficam orgulhosos, afinal “ele está virando um homem”.
O dicionário Houaiss, além de designar “grave” como um som grave, define o verbete como: “extremamente sério, preocupante; que pode ter conseqüências nefastas ou fatais (diz-se de situação, acontecimento, motivo etc.)”. Daí os textos: “Com a voz grave e embargada…” Coisa que o cinema soube usar muito bem nas trilhas, quando quer evocar uma situação de perigo e mistério: notas graves.
Vê-se que os Graves evocam força, maturidade, mistério, masculinidade e outras adoradas e temidas coisas da cultura humana. Não é à toa que os garotos procurem se guarnecer com esses valores- principalmente quando ainda têm a cabeça mais fraca.
Nas minhas festas da adolescência – quando os aparelhos eram feitos de metal e as caixas de pau – procurávamos as maiores caixas com maiores falantes, para dar mais graves. Festa “com graves” era sinal de festa boa.
Um pequeno, mas saboroso, aparte técnico.Primeiro, fisicamente as frequências graves não se dissipam no ambiente da mesma forma que as agudas. Uma freqüência aguda ou médio aguda, rasga o ambiente como um laser, é totalmente direcional. Já as graves não, se espalham no ambiente como um balde de água ou gás. Daí aquela sensação de que tudo está tremendo. Essa vertiginosa sensação de onipresença (religião?) gera um espécie de torpor e desorientação no ouvinte.
E mais, as frequências são medidas em Hertz(Hz). Quanto mais, mais agudo. O ouvido humano capta entre 20hz a 20.000Hz. Abaixo de 20 Hz não se ouve mais nada…mas se sente fisicamente. Os famosos, “infra-sons”, mais tarde chamados de subgraves. Os engenheiros de som, técnicos e shows e DJs sacaram isso logo e passaram a usar este recurso nas gravações, shows e raves. Com isso o uso dos graves passou a ter uma função não somente na audição mas também no corpo. Você não houve o os subgraves, mas eles estão mexendo com suas moléculas. No caso, vibrando.
Tudo isso faz que muitas vezes fazem que nossos corpos entrem em ressonância com a fonte sonora. Aquela sensação angustiante de cabeça estourando quando o motor do caminhão para em frente a nossa janela (cujo vidro treme também).
Músico novatos quando fazem shows costumam exagerar as frequências graves, pois querem “mais peso” no som. Peso? Impacto? Força? Poder? De novo as relações culturais na história. E reclamam que o som está muito “magrinho” – qualquer analogia com músculos bombados em academia não é mera coincidência.
Infelizmente o procedimento amador desses frangos-de-primeiro-corte, faz que o som fique confuso, pois, fisicamente, as frequências graves embolam o som muito mais facilmente que as agudas. Por isso que quase não se identifica qual música está tocando no carro do mané.
Com o tempo amadurecemos e percebemos que aquela ladainha de Yin-Yang vale para tudo. Vemos que o peso que tanto queremos está em outros fatores além de girar um botão. Um dos melhores exemplos disso é Come Together dos Beatles, extremamente “pesada”, mas com os graves bem equalizados.
Obviamente que esse meu texto pseudo científico-comportamental não interessa à maioria dos jovens que gastam os tubos com som para deixar o carro pronto para o “Pancadão” (de novo o termo que remete à força) ou aqueles que estouram a cabeça em boates. E é de certo modo compreensível esta fase de auto-afirmação: a dança do acasalamento, ser o macho alfa e conquistar mais fêmeas, a demarcação de território, etc.
Enquanto isso, nos palcos da vida, o cantor de baile do interior grita para o técnico de som, querendo ficar com voz do Senhor dos Anéis:
— Aumenta “o” graves!
E na mesa de som, o coitado a gira o botão, sob o qual está escrito….
OBS.: Não adianta ouvir na caixinha do computador. Botem fone de ouvido ou usem caixas de verdade.
Edu Pedrasse é músico profissional – guitarra e violão – há 28 anos. Possui Bacharelado e Mestrado em Música pela UNICAMP. É professor universitário na UNIMEP, no curso de Música Licenciatura e também é professor particular de música. Atua com seu show Entartete Jazz, nas casas de espetáculos de Piracicaba e região.
Site: www.edupedrasse.com
Facebook: https://pt-br.facebook.com/edupedrasse
Evandro Mangueira
11 de março de 2014
Edu, onde estudo alguns alunos passam com seus carros e o som estonteante, sempre associei a potência, ao desejo de chamar atenção, a visibilidade. Mas, creio que você me apresentou uma visão muito mais ampla. Obrigado pelo texto foi enriquecedor!
blogdoamstalden
11 de março de 2014
Excelente Edu. Eu sempre achei que por detrás do som alto havia a auto afirmação. Mas você explicou com uma profundidade técnica que eu não teria nunca. Valeu.
Carla Betta
13 de março de 2014
Que surpresa agradável! Gosto quando sou apresentada a uma nova visão, mares nunca d’antes navegados! Vc tem muito a nos dizer, Edu! Ainda detesto música alta nas ruas, mas sob outra perspectiva! Quando a gente é jovem, gosta de ouvir música alta, ainda que seja sozinho/a em casa, para a música entrar pelos poros e a gente se misturar com ela, então, posso depreender do que vc nos informou, que essa sensação da música nos tomando é, além de emocional, física também, isto é, mexendo com nossas moléculas?
Edu Pedrasse
13 de março de 2014
Minha querida.
É exatamente isso que acontece.
Além de toda carga simbólica que a música traz – é que já pode nos levar nas nuvens – recebemos seu impacto físico.
Um exemplo-clichê é aquela cantora estourando o taça de cristal cantando notas agudas.
Nesse aspecto as notas graves fazem a função muito bem, pois se dissipam como água.
É como ser acariciado pelos jatos do chuveiro.
Pedro Paulo Santos
18 de março de 2014
Idéias muito boas Eduardo! Gostei dos exemplos sonoros no final, super didatico!