Crônicas de Telópoli. A esquerda, a direita e a farsa. Por Fábio Casemiro

Posted on 27 de março de 2014 por

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Queria propor um raciocínio que respondesse ao texto do Filósofo Luiz Felipe Pondé, que é Doutor pela USP, e professor da PUC-SP, dono de um currículo bastante competente, com formação internacional, etc e etc. Pondé é polemista e faz parte de um círculo de opinadores profissionais da “nova” direita e pulsa, intelectualmente, na mesma frequência que outros polemistas, como Olavo de Carvalho, Lobão, Reinaldo Azevedo e Rodrigo Constantino.

Eu não deveria perder meu tempo com as argumentações que tais opinadores emitem. Mas perco. Me preocupo.

Aqui deixo de me pré-ocupar e passo a me ocupar. Queria ter feito um texto que comentasse, passo a passo, os pontos do texto de Pondé “Socialismo é barbárie”, publicado no jornal Folha de São Paulo, no dia 24 de fevereiro deste ano. Queria reproduzir aqui os trechos, mas o jornal não autoriza cópias e, ao lançar mão do bom “copiar e colar”, surge a mensagem:

“Para compartilhar esse conteúdo, por favor utilize o link
http://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/2014/02/1416607-socialismo-e-barbarie.shtml
ou as ferramentas oferecidas na página. Textos, fotos, artes e vídeos da Folha estão protegidos pela legislação brasileira sobre direito autoral. Não reproduza o conteúdo do jornal em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização da Folhapress (pesquisa@folhapress.com.br). As regras têm como objetivo proteger o investimento que a Folha faz na qualidade de seu jornalismo. Se precisa copiar trecho de texto da Folha para uso privado, por favor logue-se como assinante ou cadastrado.” [grifo meu]

Não entrarei no mérito dos direitos de propriedade do jornal. Mas eu iria citá-lo, como feito acima, atribuindo o texto ao autor e ao jornal. Triste essa política. Diria que emblemática, até. Uso o recurso para citar (sou radicalmente contra plágios!) artigos acadêmicos, por exemplo, em minha tese de doutoramento. Faço-o sempre armado das ferramentas da ABNT (associação brasileira de normas técnicas)… Porque no texto de um filósofo, doutor, o trabalho de cópia de trechos para a citação é dificultado? Mas não. Prometi não discutir os direitos da Folha. Ainda mais os de “investimento”.

Assim, destaquei apenas duas frases (todas seguem devidamente entre aspas!): recomendo, aos interessados, que deem uma olhada no texto de Pondé (antes, se possível). O link está na citação que coloquei anteriormente.

Vejamos as frases:

1. “O socialismo é tão pré-histórico quanto a escravatura.”
2. “Mas a esquerda não detém o monopólio do pensamento público no Brasil. Não temos mais medo dela”.

São frases como estas que nos levam a questionar a honestidade intelectual do Sr. Pondé. Não sou socialista. Sou crítico do socialismo como projeto de Estado, mas o que mais me preocupa é a crítica rançosa, fácil e com suposto aroma de intelectualidade (quando justamente a intelectualidade saltou pela janela).

É o tipo de miséria intelectual, filosofia de grocerystore, que o Sr. Pondé sempre pratica, em seus textos jornalísticos: frases de (d)efeito que, palatáveis, agradam afetivamente quem quer se posicionar anti-esquerda, mas se sente sem argumento. A questão que fica é: palavras bonitas são sinônimo de argumento convincente?

Explico. O que ele quis dizer com a frase (1)?

Vejamos: a escrita marca (para alguns historiadores, não todos) o início da história. A escrita é tão antiga talvez tanto quanto a escravatura… Isso deslegitima a escrita? (A cerveja é tão antiga quanto a escrita… Isso nos impede a degustação da cerveja?). Óbvio, o Sr. Pondé quis ser irônico. Penso que a ironia é um “dizer pelo contrário”, mas a diferença entre a ironia bem feita e a frase boba é que a ironia está a serviço de uma ampliação do sentido imediato. A figura de linguagem “ironia” amplia sentido e, dessa forma, critica. Uma crítica engraçada, uma “tiradinha de sarro” pode ter um agradável efeito retórico nas mesas de buteco. Mas há que se diferenciar – porque falamos de um texto que se quer sério, sobre um assunto sério – o que é ironia de gosto e o que é ironia à “tira-gosto”.

A ironia mal feita na frase (1) carregaria o seguinte sentido: “o socialismo é um sonho antigo e ultrapassado”. Não foi o que o Sr. Pondé escreveu e, no texto, ele não dá conta de explicar o contexto histórico relativo ao passado que ele mobiliza, por meio da infeliz ironia. Sendo muito generoso com essa afirmação (porque supor o que o texto quer dizer sem tê-lo feito, é ser muito generoso), poderíamos dela extrair uma importante pergunta: O que se afirma “socialismo”, nos dias de hoje, se orienta exatamente pelas mesmas reflexões e age, politicamente, do mesmo modo como fariam os “socialistas” do passado?

A resposta óbvia é “não”. Não se trata de concordar ou não com o socialismo para compreendermos que doutrinas e ideologias são carregadas e alimentadas por seres humanos que se organizam em sociedades e, por isso, elas se ressignificam culturalmente, dialogando e formando os momentos históricos em que vivem seus atores. Se aposentarmos o socialismo tomando o critério de senilidade histórica (como ele sugere)teríamos que jogar pela janela todas as religiões do mundo: lá iriam para o lixo Jesus, Buda, Maomé, Abraão…
Não quero acreditar que um filósofo tão bem formado tenha banido uma ideologia a partir do critério de idade. Continuemos nosso raciocínio…

Será que o Sr. Pondé quis dizer estritamente que o socialismo surge na pré-história?

Não. O socialismo não é pré-histórico. Tenho certo que o Sr. Pondéaprendeu a diferenciar “socialismo” e “comunismo” de “comunitarismo”. As comunidades pré-históricas não eram socialistas porque o socialismo é uma utopia própria do XIX, filha do pensamento (liberal e iluminista, diga-se de passagem) do filósofo Jean-Jacques Rousseau. O comunitarismodas comunidades ditas “primitivas” não pode ser tomado como comunismo, já que comunismo e socialismo pressupõem industrialização (revolução burguesa, apropriação dos meios produtivos pela burguesia e tomada do poder pelo proletariado)… Coisas muito distantes das comunidades primitivas cujas tecnologias (sofisticadíssimas, em muitos aspectos!) se assentam em modelos não tecnicistas, não “progressistas”. Socialismo pressupõe progresso, algo muito distinto do pensamento mítico próprio dessas comunidades.

Curioso que essa abordagem que credita socialismo às comunidades primitivas já foi proposta por pensadores marxistas… Mas já caíram em descrédito por pensadores, também marxistas, mas muito mais atentos aos estudos contemporâneos nas áreas de antropologia, sociologia e história. Quando Pondé aproxima comunismo de comunitarismo ele toma uma estratégia retórica dos mais antiquados marxistas. Isso não é ingenuidade. É manipulação vulgar, tomando a caricatura do oponente como diretriz crítica para a criação de um monstro. É preciso que o inimigo seja feio, seja mau, seja grotesco. (É o que, por exemplo, Heródoto fazia quando descrevia os bárbaros!).Daí a generalização (estratégia retórica desleal) de que corrupção e totalitarismo sejam exclusividade de políticos de esquerda (no Brasil ou no mundo).

Quando Pondé aproxima socialismo de escravismo, ele joga fora os pressupostos iluministas (principalmente, o pensamento de Jean Jacques Rousseau) como propulsor de todo o pensamento libertário (nome genérico de todos as posturas de esquerda, próprias do século dezenove).O pensamento rousseauista, e que ilumina os primeiros esquerdistas dos anos 1800,funda-se na oposição direta ao pensamento escravista (e que embasa o direito divino dos reis) tributário dopensamento de Aristóteles (via Thomas Hobbes).

Eu me recuso a acreditar que a frase de número (1) não queira dizer o que ela diz. Me recuso a acreditar que um intelectual com boa formação,como Pondé, não saiba o que a frase que ele escreveu quer dizer.Pela lógica, só me resta concluir sobre a desonestidade intelectual no texto de Pondé.

Já a frase (2) é mais interessante ainda: “Monopólio do pensamento público no Brasil”. O que exatamente isso significa? Vejam o texto: não está claro o que ele quer dizer com isso. O que é “pensamento público”?
a.Senso comum?
b.Pensamento na universidade pública?
c.Pensamento da universidade pública?
d.Pensamento sobre a universidade pública?
e. Reflexões sobre a gestão do Estado Brasileiro? – Essa é a melhor hipótese. (Mas “pensamento público” definitivamente não quer dizer isso).

Vamos lá… Se é possível entender o que ele quis dizer, ele afirma que a esquerda não controla (mais) a reflexão sobre políticas atreladas ao Estado Brasileiro…. Muito bem. Vamos aos desdobramentos lógicos dessa afirmação: Quando controlou?

a.Na época da colônia?
b.Na época do império?
c.Na época da República Oligárquica do Café-com-Leite?
d.Na ditadura de Vargas?
e. Na era Kubitschek?
f.Na ditadura militar?
g.No governo Sarney?
h.No governo Collor?
i. Na era FHC?
j. Talvez na era PT?

Bom, nossos 514 anos de história criaram uma cultura política brasileira, própria, hegemonicamente marcada pela escravidão, pela força das oligarquias. Essa mesma cultura política, conseguiu superar muito de suas tendências autoritárias e desde 1988, (com a promulgação da constituição). Desde então, temos que ela se organiza de modo minimamente democrático.

Ou seja: nossa tradição política é historicamente autoritária; nossa modernidade política (são 26 anos!) é democrática… Onde está o suposto “monopólio do pensamento público no Brasil” pela esquerda que Pondé afirma? Não é razoável crer que 12 anos de governo de (uma) esquerda, eleita democraticamente sejam capazes de anular 488 anos de cultura política autoritária no Brasil. Ao contrário: episódios como o do “mensalão” apenas nos levam a compreender que o PT para alcançar e se manter no poder se permitiu lançar mão de estratégias políticas já consolidadas na nossa cultura desde nossos primórdios, séculos antes de qualquer tradução ou inspiração libertária por aqui. Se lembrarmos de nossos estudos de história do ensino médio, relembraremos termos “engraçados” que caiam nas rígidas provas, aplicadas por professores rigorosos (desde seu Beduschi até o Amstalden)… Vocês lembram da “Conciliação” (Partidos Liberal e Conservador se revezando no poder)? Vocês se lembram do “Parlamentarismo às Avessas” com D. Pedro II? E da “Política dos Governadores”? Da “República do Café com Leite”? A prática do fisiologismo político sempre foi a tônica em nossa cultura (“nada mais Conservador do que um Liberal no poder”. Lembra?)
Até o fim do “Café com Leite”, que saiu do poder em 1930 (com Vargas), não havia nenhum partido de esquerda (libertário) participando expressivamente de nenhum braço do executivo, do legislativo ou do judiciário brasileiro. Eventos da ordem de um mensalão (ou de um tremsalão) já faziam sucesso na política brasileira, antes da existência dos sonhados “inimigos socialistas” existirem em nossas terras.(Isso certamente explica, por exemplo, a permanência política do Sr. Paulo Maluf, criminoso internacional cujo nome consta na lista de procurados da Interpol!) A teoria de que os anos de governo do PT refundaram a cultura política brasileira em algo completamente distinto dos demais 488 anos anteriores de história do Brasil é a base do raciocínio de Pondé. Isso permite compreender seu texto como um dos depoimentos mais intelectualmente desonestos que eu já li em toda a minha vida. Sabendo da qualidade da formação intelectual do professor (apresentada no rodapé do artigo publicado na Folha de São Paulo), a hipótese de desinformação ou ingenuidade cai por terra. Infelizmente, conteúdo e forma ali executam uma dança retóricavazia, o que confere ao texto de sarjeta um falso aroma de intelectualidade. Pondé opta pelos sabores piadísticos, as frases de efeito que nada dizem, no intuito de seduzir o leitor ávido por críticas com cheiro de doutor.

Sinto muito, caro leitor de Pondé! A esquerda não é tão competente quanto ele deseja. Ela não é tão coesa, não é tão forte e não é tão eficiente quanto seu texto diz. (Eu, sinceramente, até gostaria que ela o fosse!).

Pondé não sabe filosofia? Pondé não sabe história? Claro que sabe, ele é um brilhante jovem intelectual… Mas usa seus argumentos para animar setores da mídia que descobriram no conservadorismo rastaquera uma verdadeira mina de ouro.

O problema do Pondé não é criticar a esquerda. É ser desonesto porque sabe que os debates políticos brasileiros não podem ser reduzidos à simplicidade maniqueísta que ele prega. De quais esquerdas ele quer falar? Muitos dos críticos do governo Dilma são de esquerda. Muitos dos Black Blocks são de esquerda. Os anarquistas, por exemplo,(uma das ideologias que compõem a taxonomiadita “esquerda”) se opõem ao governo federal, independentemente da plataforma política, porque rejeitam a democracia indireta (não acreditam na concepção de “representação política” que funda as democracias ocidentais). Anarquistas e liberais (ele se diz, em outros textos, “liberal”) certamente almejam que “a economia seja deixada em paz”, pelo Estado. Quando ele prega que técnicos a controlem, fica minha pergunta no contrapé: “Técnicos de qual postura política? Já que a técnica não existe, em política ou economia, para além ou aquém das ideologias.” A grande diferença entre muitos anarquistas e muitos liberais reside no modo como ambos compreendem as palavras “Estado” e “paz”. Não. Política não se faz com dualismos e essa tendenciosa argumentação “simplória” esconde, propositalmente, questões mais complexas… Perguntemos: a quem ela serve? Sabemos já, a quem se destina.

Adoro ler crítica política bem feita. Infelizmente, as boas críticas que leio sobre os governos do PT partem, geralmente, de grupos de esquerda. Os polemistas-pop da direita ainda brincam de histórias da carochinha. E Pondé –pasmem!– é o mais articulado deles. Mainardi, Olavo, Lobão, Reinaldo, Constantino são tão diferentes em suas formações e posições políticas… Tentam se apoiar um nos outros a partir de um posicionamento comum que nunca tiveram (Lobão leitor de Nietzsche e amante do funk carioca só pode compartilhar mediocridade com o cristianismo medieval de Olavo de Carvalho… parece piada!).

Sem nada a acrescentar, os paladinos da direita inventam fantasias psicóticas e ficam com cara de esperando Godot… Pondé posa de politicamente incorreto, fazendo carinha de cult, fetichizando se tornar o novo Carlos Lacerda a tropeçar em seus sonhos megalomaníacos. A direita que vemos, Veja, precisa criar um deus para devorá-lo. Às vésperas da nova passeata TFP-1964-revival, vemos, infelizmente, a história se repetindo como farsa.

É uma pena.

Fábio Martinelli Casemiro

Doutorando em Teoria Literária pela Unicamp
Mestre em Teoria Literária pela Unicamp
Especialista em História Cultural e
Historiador pela Unimep