Imagine viver na época da colônia, quando a maioria das terras estava nas mãos de pouquíssimas pessoas, senhores de engenho. A lei não lhe valia, ou pelo menos, não na prática. Aos senhores tudo era permitido, tudo era possível. Eram deles as terras, as forças armadas, as armas, o aparelho do Estado, o dinheiro, a produção e até as pessoas. E além de todo aparato legal, econômico e burocrático, a Igreja também estava ali, pregando a aceitação e a docilidade. A cultura religiosa valorizava o sofrimento e desestimulava a resistência, justificando a estrutura do poder. Se você fosse negro, mulato ou branco pobre, estaria na periferia do sistema social A você restariam dois caminhos: a rebelião (que as vezes era a fuga dos escravos) ou a subserviência e a busca da proteção do senhor. Tentativas de rebelião houveram, mas foram massacradas. Resistências individuais também, mas tampouco levaram a alguma mudança. Assim, o grosso da população pobre, escrava ou livre, se submetiam, aceitavam o sistema injusto e, aí está o diferencial, se integravam a ele, não reagindo e, se possível, arrumando um lugar privilegiado dentro daquela estrutura.
Logo se você não tinha força para combater o senhor de escravos, pelo menos o adulava e tentava arrumar um lugar de criado na casa grande. Se fosse livre, mas não tinha direitos plenos de cidadania pedia a proteção do senhor para ter justiça ou para ter algum privilégio. O fim do Império não mudou as coisas, pelo menos não muito. A República, embora tenha trazido alguns avanços, foi proclamada pelos “barões do café”. De uma elite canavieira passamos ao domínio de uma elite cafeeira. O voto passou a existir, mas restrito e direcionado. Era a época dos “currais eleitorais”, do voto de “cabresto”, cuja decisão do peão, do pobre nas urnas era tomada não por ele, mas pelo “coronel” que dominava a área. A República trouxe muitas mudanças na teoria, mas poucas na prática. Você pode argumentar que isto já passou e que agora as coisas deveriam ser diferentes. A era dos senhores e dos coronéis já se foi, logo não é mais admissível que tenhamos tantos privilégios para os que comentem crimes e são ricos, tanta corrupção. É verdade, não deveríamos e não devemos, mas ainda temos todo este desmando. E uma das causas disto (existem outras, mas aqui não cabem) está exatamente no fato de termos adotado a cultura do privilégio, do “jeitinho”, do apadrinhamento. Se a forma de sobreviver em uma sociedade opressiva era ganhar favores, então adotava-se esta prática. Se em uma sociedade desigual a única chance é aderir à desigualdade encontrando um “lugar” privilegiado, então se incorpora isto na nossa cultura. Daí o apadrinhamento, a “tolerância” com a corrupção, com os desmandos e privilégios, pois nós passamos a aceitar que “é assim mesmo” e que se você não entra no esquema, está perdido.
E esta “corrupção cultural”, que tolera os privilégios porque também os busca, ao invés da igualdade, se expressa não somente em grandes fatos, mas no nosso quotidiano. Quando furamos uma fila, pedimos um “favor” a um político ou mesmo estacionamos em lugares proibidos ou na frente da casa de outras pessoas, estamos reproduzindo a cultura do privilégio, do individualismo que desrespeita as regras em benefício próprio. Ou seja, somos corruptos nas pequenas coisas e por isto acabamos por “tolerar” a corrupção nas maiores. Se você quer mesmo uma mudança, comece a mudar a sua postura e a sua cultura. Respeite as regras, desde as menores, e exija o mesmo respeito em todas elas. Com isto você terá dois efeitos. Primeiro, começa a construir uma cultura melhor, mais cidadã e a espalhar tal cultura. Segundo, ganha efetivamente o direito de reclamar e exigir. Caso contrário, como exigir a honestidade que também não temos?
Nossa corrupção cultural. Por Luis Fernando Amstalden
Posted on 26 de março de 2014 por blogdoamstalden
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Evandro Mangueira
26 de março de 2014
Sempre faço essa pergunta, como exigir quando somos corruptos! Muito bom o texto, creio justamente nisso, que essa cultura tão enraizada em nosso povo seja banida para sempre, desde os pequenos atos até os grandes.
Gleison
26 de março de 2014
E quando um determinado político, com certa influência e poder (mas não tanto quanto ele pensa e gostaria), vai a uma unidade de saúde e tenta se valer de suas supostas “prerrogativas” para “pedir” que um familiar, amigo ou simplesmente eleitor seja atendido com preferência, ou que seja “adiantada” uma consulta, ou que seja “dado um jeitinho”, e ainda se diz vítima do médico que recusou a “dar o jeitinho”? (não estou citando nomes, deixo bem claro…)
Carla Betta
26 de março de 2014
É bem isso, visceralmente isto! Além da perspectiva da atuação política que o Eduardo Stella tão bem defende, temos que ter uma luta igualmente visceral, mas direcionada a pequenos grupos, respeitando suas características peculiares, no fazer entender o que é cidadania, o que é respeito, o que é colaboração, o que é comunidade e que aquilo que é comunitário não é responsabilidade de um ninguém, nem do estado, mas é responsabilidade de todos. A lei de Gérson ainda impera não apenas nas nossas atitudes, mas em nosso âmago e é lá, no fundo deste poço, que precisamos arrancá-la com o bisturi da educação e da renovação dos valores e conceitos.
Anônimo
26 de março de 2014
Parabéns pelo texto, é exatamente aquilo que penso. Você deve lembrar de outras manifestações minhas aqui no seu blog, quando eu falo do respeito a vagas do deficiente do idoso, do carrinho do supermercado atras do veículo dos outros, da ultrapassagem pela direita, etc, como então criticar os erros dos outros. Falando em erro, hoje é manchete nos jornais que o TJ também mandou o Storel ser readmitido pela Câmara. E ai presidente, vai cumprir a ordem judicial ou vai se sujeitar as penalidades por descumprimento?
Edu Pedrasse
26 de março de 2014
Os políticos vem do povo.
O povo é o povo.
Os políticos são corruptos?
O povo é corrupto.
Anônimo
16 de outubro de 2014
Ótima publicação, agora compreendi que a corrupção vem de nós mesmos, pela falta de nosso conhecimento e pela falta de não ter voz, e falarmos o que pensamos e assim ter uma cultura sem corrupção e um mundo diferente.