Caso Riocentro: o final da farsa? Por Orlando Guimaro Jr.

Posted on 31 de julho de 2014 por

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               A notícia de que os envolvidos no caso do Riocentro poderão ser responsabilizados pela Justiça Federal do Rio de Janeiro, que aceitou no último dia 15 denúncia apresentada pelo Ministério Público Federal, oferece, mais uma vez, a oportunidade de esclarecer um dos episódios mais escabrosos da ditadura militar (1964-1985) e também da história recente do país, um verdadeiro símbolo do corporativismo e da impunidade. Na noite de 30 de abril de 1981, uma bomba explodiu em um Puma que se encontrava no estacionamento do Riocentro, na cidade do Rio de Janeiro, no momento em que ocorria um show em comemoração ao Dia do Trabalho. Dentro do veículo encontravam-se o capitão Wilson Luís Chaves Machado, ferido gravemente, mas que sobreviveu, e o sargento Guilherme Pereira do Rosário, morto no mesmo instante. Considerados nos dias seguintes como vítimas de um atentado promovido por subversivos, logo se descobriu que, na verdade, os dois militares foram os causadores de seu próprio infortúnio, pois membros de um perigoso grupo de terroristas de extrema direita que, com outros radicais, portavam artefatos explosivos que pretendiam utilizar no show daquela noite, com público estimado de vinte mil pessoas em um recinto em que as saídas de segurança foram propositalmente fechadas.

               Felizmente o horror destinado a atingir milhares não ocorreu, não só pela detonação antecipada no Puma, mas também porque uma bomba que tinha como alvo a casa de força do local não cumpriu seu intento de deixá-lo às escuras. A sorte não ajudou seus planejadores, mas não faltava expertise aos terroristas que participaram da operação, pois desde o final dos anos 70 integrantes do Serviço Nacional de Informações (SNI), dos serviços secretos das Forças Armadas e policiais envolvidos com torturas e espionagem, descontentes com o “abrandamento” da ditadura, começaram a promover atentados, primeiro explodindo bancas de jornal, depois passando a ações mais violentas como a bomba enviada à OAB carioca em 1980, em que a secretária Lyda Monteiro perdeu a vida depois de ser gravemente mutilada na explosão decorrente. Em todos os casos, o corporativismo derrotou o interesse em identificar os autores desses crimes, e que os deveriam investigar ignorava, pois, conforme Lucas Figueiredo, sempre havia “uma testemunha que tinha anotado a placa de um carro ou visto o rosto de um suspeito. As bombas também deixavam pistas, como o tipo de explosivo empregado, detonadores e materiais de acabamento”.

                Provas também não faltaram no caso Riocentro, na forma do corpo do sargento Rosário e no depoimento das primeiras testemunhas que o encontraram, dentre outros indícios materiais que comprovavam a trama, tornando inverossímil a versão defendida pelo governo de que a bomba fora colocada no veículo por subversivos aproveitando uma pueril distração dos militares. Com uma maior liberdade de atuação graças ao abrandamento da censura e já experiente nas manhas adotadas pelo governo para livrar os envolvidos em escândalos cuja investigação não lhe interessava, a imprensa desmentiu com ênfase a versão oficial, apresentando todas as suas contradições, mas o que prevaleceu novamente foi uma apuração de fachada, resultando em um IPM (Inquérito Policial-Militar) que ocultou o envolvimento de agentes da própria comunidade de informações, ratificou a versão de que o sargento e o capitão foram vítimas e produziu o resultado de sempre: a impunidade.

            No final dos anos 90 o caso foi reaberto e declarações de figuras de alto calibre do regime, como o general Newton Cruz e o ex-ministro-chefe do SNI general Octavio Medeiros confirmaram que sabiam da realização do atentado com semanas de antecedência, o que fez do Riocentro não uma ação de extremistas isolados, mas sim planejada por pessoas que circulavam com desenvoltura no aparato da repressão oficial e acobertada por graduados membros do governo. Se na primeira apuração a pressão pela mentira oficializada triunfou, na segunda vez baseou-se na Lei de Anistia (verdadeiro absurdo, pois a lei é de 1979 e somente poderia ser invocada para anistiar crimes anteriores a essa data) e na prescrição penal dos mesmos crimes para evitar a responsabilização daqueles que, por muito pouco, não provocaram uma tragédia de grandes dimensões no longínquo ano de 1981.

               Mais de três décadas depois desse ato hediondo, na ocasião em que o país rememora o cinquentenário do golpe que implantou a ditadura militar, a Justiça tem uma nova chance de julgar o caso, desta vez sob a ótica da imprescritibilidade dos crimes cometidos contra a humanidade, prestigiando o melhor entendimento das declarações, tratados e convenções internacionais sobre o tema. Por mais que esse esforço de punir os envolvidos seja meritório, adverte-se, porém, que a Justiça brasileira durante muito tempo foi conservadora no trato de questões relacionadas à ditadura, especialmente nas cortes superioras, e mesmo o Estado brasileiro, ao contrário de outros países que sofreram com regimes de força, jamais se esforçou de fato para colaborar na punição de torturadores e assassinos do regime.   Paradigma da falência institucional de uma ditadura implantada com pretensões moralizantes, o caso Riocentro não pode jamais ser esquecido. Indo além, deveria ser constantemente estudado nas escolas brasileiras, pois reúne, no mesmo episódio, desvirtuamentos que permeiam nossa história desde o descobrimento e que merecem nosso integral repúdio: o autoritarismo, a corrupção de valores e princípios, o uso de cargos e funções públicas para a prática de crimes e a impunidade.

Orlando Guimaro Junior é advogado com especialização em Direito Contratual (PUC/SP) e coautor do livro Piracicaba, 1964: o golpe militar no interior

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