Quando eu era garoto, um colega de escola nos contou sobre o sítio do seu tio, que produzia leite. Falando da ordenha, ele nos disse que logo que o leite era colocado nos latões, o tio acrescentava “um tanto” de água. Lembro ainda que o colega complementou: “imagine quanta água o leite vai ter quando chegar na sua casa…”. Só que ele contava o fato rindo, com alegria pela “esperteza” do parente. Eu, que nunca fui exatamente um diplomata, emendei na hora: “seu tio é um ladrão”. Meu colega não gostou nem um pouco e, irritado, respondeu: “todo mundo faz isso”. Aquilo nunca me saiu da cabeça, não a água no leite, mas o fato de que meu colega considerava que o tio estava correto, já que “todo mundo faz”. Depois, no decorrer de minha vida, me deparei e me deparo com o mesmo fenômeno: as desonestidades cometidas e/ou toleradas, mediante a desculpa de que “todos fazem o mesmo”.
Como sociólogo entendo que isto é uma das variações do “jeitinho brasileiro”, das desonestidades aceitas culturalmente pela nossa população. Também entendo a origem deste fenômeno. Nossa sociedade foi sempre tão desigual e com uma estrutura social e cultural que privilegiava tanto as elites, que manter-se honesto no passado era manter-se preso à pobreza e à submissão. Fraudar, obter privilégios, subverter as regras em proveito próprio e outras atitudes do gênero, foram formas de sobrevivência, principalmente daqueles que nada tinham, nem seus direitos mínimos garantidos. A honestidade e o respeito às regras não valiam a pena, uma vez que as regras privilegiavam a poucos e ser honesto não trazia nenhuma vantagem. Isto se consolidou culturalmente, daí a desculpa: ”todo mundo faz”. Mas, entender profissionalmente não é aceitar ou acatar. Eu entendo, mas não só não aceito esta nossa prática cultural como vejo, também profissionalmente, uma questão prática mais complicada. A de que a nossa cultura de tolerância com delitos cria uma sociedade também injusta e aquele que faz algo desonesto, por menor que seja, vai receber, mais cedo ou mais tarde, desonestidade em paga da sua. Talvez meu amigo tomasse leite mais puro, que o tio reservava para a família, mas vivendo em uma sociedade em que “todo mundo faz” fraudes, ele também, assim como o tio, acabou por ser fraudado. Em algum momento eles compraram um quilo de arroz que só tinha 950 gramas, compraram um produto inadequado para sua necessidade, pagaram mais caro do que deveriam por muitas coisas e sofreram os efeitos das ações de quem não respeita regras de trânsito, não trabalha corretamente em sua função pública ou mesmo de políticos e gestores que governam em causa própria. Ou seja, na sociedade em que “todo mundo faz” aquilo que é desonesto, “todo mundo” acaba sofrendo também os efeitos da desonestidade alheia. Você pode “ganhar” agora, mas vai “perder” mais adiante.
Já argumentei em meus artigos que precisamos urgentemente de uma revolução no Brasil. Uma revolução cultural, ética, em que possamos abolir a cultura do “jeitinho”, dos “espertos x otários”, do Pedro Malasarte e de outros anti-heróis. No passado talvez isso tenha sido uma resistência do marginalizado. Mas mesmo naquela época e mais ainda hoje, a resistência é enganosa, ela só cria mais opressão e injustiça, além da nossa apatia política e social. Apatia profunda, que tolera políticos corruptos porque, afinal, “todo mundo rouba”, tolera empresas corruptoras porque “todo mundo faz” e no fundo o que os “apáticos” gostariam é que no roubo alheio sobre algo para eles. Sobra, mas não a parte boa, pode apostar.
Que meu antigo colega, se ler este artigo e se lembrar do fato, me perdoe, mas seu tio era sim, um ladrão. Esta é a palavra. Roubo é roubo, seja a mão armada seja adicionando água ao leite que se vai vender como puro. E em uma sociedade e que “todo mundo’ rouba, “todo mundo” será roubado. Eu não quero viver assim, em uma eterna corrida para lesar antes que alguém me lese. Eu não quero ser “todo mundo”. E você, quer?
skperina@ig.com.br
20 de agosto de 2014
Parabens amigo
Orgulho-me de ser sua amiga
bjs
So
Evandro Mangueira
20 de agosto de 2014
Tento todos os dias lutar contra o famoso jeitinho. É uma luta constante e contra muita gente, pois a cultura do jeitinho é bem enraizada na nossa sociedade.
Mariana
20 de agosto de 2014
Me incomodo um pouco com a coisa de associar o jeitinho brasileiro aos ladrões. Morei uns bons 10 anos fora, não vi diferença nenhuma nessa cultura de tentar levar vantagem em tudo, pelo menos nos países latinos.