O trabalho e o título. Por Luis Fernando Amstalden

Posted on 26 de novembro de 2014 por

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tarsila

Pelo auto falante, ouço, no supermercado, uma voz pedindo que o “associado” “fulano de tal” vá até a seção de conservas. É ali que eu estou e ali que, esbaforido, chega o “associado”. Um senhor de meia idade, de macacão, balde e vassoura nas mãos. Vem correndo limpar o chão que está sujo com o conteúdo de um vidro de conserva derrubado por um cliente. Atrás dele vem outro “associado”, alguém com mais “ações” talvez, porque é nitidamente o chefe do primeiro. Mais jovem, de gravata, repreende o que limpa o chão por algo que não consegui ouvir.

É claro que o uso altera o sentido das palavras. Mas no meu entender, associado é alguém que é sócio de algo, que detém parte do patrimônio de alguma empresa, clube ou outra entidade. Alguém que mantém uma entidade pode ser sócio também, contribuindo, mas neste caso o título é apenas honorífico. E para aqueles dois, o título é também uma honra? Eu penso que não. Para eles não é uma honra, é um eufemismo enganoso, até mesmo um engodo. Eles são empregados, assalariados, funcionários daquela grande rede de supermercados que aliás, é multinacional. A empresa tem sócios sim, e eles estão nas grandes capitais do mundo. Alguns nunca viram a sede da empresa de perto, apenas detém ações, partes do capital dela e também do lucro. Estes são os verdadeiros associados, e não, com certeza, o faxineiro e seu jovem superior.

Mas o auto falante insiste no termo. E não é o único. Nos crachás dos caixas a palavra se repete, assim como no do segurança e nos dos repositores. Associados, não empregados. De acordo com os crachás, aqueles homens e mulheres não são trabalhadores que dependem de um salário, mas pessoas ligadas à empresa através de um conceito vago, que não faz menção a diferenças e hierarquias. A imagem que passa é “suave”, “branda”. Remete a ideia da corporação, da empresa como algo “horizontal”, nas quais as pessoas estão unidas pelo mesmos objetivos. Só que não estão. Para alguns o objetivo é o maior montante de lucro possível e para outros, a maioria, é a sobrevivência. Para uns o ganho é flutuante, mas pode ser bem polpudo. Mas para outros é um salário fixo, definido por critérios de “mercado” e não pelo real valor do trabalho ou pelo quanto o trabalhador precisaria ter uma vida com alguma segurança. As diferenças estão lá, são reais, mas são escondidas pelas palavras, pelos termos que aludem a uma sociedade simétrica, justa, perfeita.

Nem sempre foi assim. Operário, trabalhador e camponês já foram exatamente isso nos termos. Operários, trabalhadores e camponeses. Agora, na sociedade de imagens, de simulacro, como dizem os estudiosos da área, o status é redefinido na gramática e na aparência. “Associado” não é o único termo eufemístico, temos também os “colaboradores”, os “membros da equipe”, do “time” e no limite até da “família”. Mas são somente imagens. Na realidade a assimetria está lá, continua lá. A relação entre trabalhadores e proprietários não é de associação ou de colaboração. É de venda da força de trabalho em troca de uma quantia fixa. Esta quantia, por sua vez, não depende, repito, da necessidade do trabalhador ou de sua importância, mas da quantidade de iguais a ele no “mercado” e da capacidade que o empregador tem de substituir as funções por máquinas. Quanto mais gente para uma função e mais máquinas capazes de fazer a mesma função, menor o salário, independente de qualquer outra consideração. A autoridade também está lá e existem sim relações de poder bem definidas. Mas no mundo moderno, não se assume estas características. Elas são escamoteadas pelas palavras, imagens e conceitos que simulam uma realidade mais justa, mais equilibrada, mas mantém uma relação menos harmoniosa do que gostaríamos.

E os associados de agora, assim como seus antecessores empregados e operários, continuam limpando o chão sob a repreensão de associados mais graduados, que usam gravata, crachá mais elaborado e talvez se sintam mais do que são.

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