Coluna Medicina e Vida. A PERDA DOS VALORES E A JUDICIALIZAÇÃO DA VIDA. Por Alexandre Pacheco

Posted on 24 de fevereiro de 2015 por

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alexadre pachecoA primeira vez que ouvi um advogado fazendo uma palestra sobre medicina defensiva, confesso que estranhei muito. Não compreendi como a relação médico-paciente, algo para mim sagrado, pudesse evoluir para uma situação de presunção de desconfiança ou má fé de ambas as partes que justificasse prevenção judicial. Confesso que resisti à ideia por mais de uma década.

Entretanto a sociedade mudou muito, não apenas na minha área, mas em todas elas. Há 12 anos, quando vim para Piracicaba, quando alguém tinha uma lesão do ligamento cruzado anterior do joelho cirúrgica por exemplo, eu colhida história, exame físico, fazia hipótese diagnóstica, indicava a cirurgia e já marcava a data. Havia uma razoável boa fé nas relações médico-paciente-operadora de saúde e hospital.

Hoje, diante do mesmo caso, preciso inicialmente pedir um exame de imagem. Se não, não convenço nenhum deles de que a lesão realmente existe. Uma vez “no papel” e após a tradicional consulta ao google ou ao vizinho ou outra opinião médica, o doente se convence de que o que ele tem é realmente o que foi suspeitado e de que deve ser operado. Já com a operadora, há a necessidade de uma auditoria minuciosa, que tem a liberdade de questionar todos os pormenores, indicação, conduta, técnica cirúrgica proposta, etc … temos aí o tempo necessário para a liberação da cirurgia. Começa o terceiro tempo, a marcação da cirurgia. O hospital pede o código da liberação da cirurgia, observa tudo o que foi liberado para ser usado na cirurgia, impõe uma série de regras e horários e finalmente temos a cirurgia marcada.

Há um ano aceitei colocar em minha rotina o termo de consentimento informado, onde o paciente assina estar ciente e concordando com a cirurgia numa folha que descreve as principais possíveis complicações e suas obrigações no pós operatório. Um dia, conversando com um primo veterinário formado há 3 anos, comuniquei essa decisão. Ele se mostrou surpreso me dizendo que nunca havia posto a mão num animal sem o mesmo termo, ou seja, ele se formou 15 anos depois de mim e começou a prática na veterinária antes… Nessas horas a gente pensa que deve estar ficando mesmo velho.

Recentemente, fui viajar e a companhia aérea atrasou minha volta em dois dias por conta de uma greve de pilotos. Houve uma situação estressante para conseguir a passagem de volta, até que me deram uma passagem de outra companhia e eu voltei, fora do tempo previsto. Irritado com a situação, fui aconselhado por vários amigos a entrar na justiça. Confesso que tive vontade sim, mas pesando bem decidi que não faria aquilo. Pensei então no que, a meu ver, deveria ter sido minha primeira opção: conversar com a companhia. Informei via site dos transtornos e de como me senti prejudicado. Qual não foi a boa surpresa que a empresa, agora num melhor momento interno, me ofereceu facilidades para um novo vôo e eu me senti reparado. Na verdade, mesmo que fossem apenas desculpas sinceras, talvez eu me contentasse, desde que sentisse realmente que houve preocupação com o meu mal estar. Fiquei feliz por ter confiado na empresa, tido fé em sua boa prática de mercado.

Fico pensando o que nos levou a mudar tanto em poucos anos. Minha hipótese é a de que nossa sociedade carece de valores humanitários. Vimos perdendo-os nos últimos anos. O que nos caracteriza hoje? Quais são nossas verdades? O que podemos esperar de nossos conterrâneos, nossos compatriotas? Acredito que nem o judiciário aguenta tanta desconfiança. Fico imaginando um juiz com aquela mesa cheia de processos por desavenças, muitas delas que poderiam ser resolvidas com conversas maduras baseadas em valores morais coletivos.

Cada vez há menos fé pública em nossas instituições. Acabo de acompanhar o desfecho dos atentados na França. No caso do supermercado, houve a perda de quatro reféns durante a ação e mesmo assim a polícia foi ovacionada por ter feito um bom trabalho. Acredito que se fosse aqui nossa polícia estaria sendo criticada duramente por não salvar os reféns. Não seria hora de revermos nossos valores?

Alexandre Pagotto Pacheco é médico e cirurgião

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