Um Charlie Hebdo no Brasil? Por Rodrigo Batagello

Posted on 23 de fevereiro de 2015 por

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Foto de Rodrigo Batagello

Foto de Rodrigo Batagello

Cheguei em casa na madrugada do 7 de janeiro, depois de um período de férias com minha esposa. Acordei mais ou menos 12h30, incomodado com o profundo e incomum silêncio que imperava nas ruas de nosso bairro.

            Embora não seja um local tumultuado, o ronco das motocicletas, eventuais buzinas e sirenes são sons do cotidiano. Mas desapareceram naquela manhã. Simplesmente desapareceram.

            Durante o café, que ocupou o horário do almoço, o noticiário trazia a explicação para esse silêncio: o governo francês havia elevado para o nível máximo o sistema Vigipirate, que estabelece planos de ação diante do risco ou ocorrência de atentados terroristas no território francês.

            Como estávamos sem suprimentos, resolvemos sair para comprar alguns mantimentos em um mercado próximo.

            As pessoas estavam nas ruas, mas as ruas permaneciam mudas. Todos caminhavam cabisbaixos, mantinham um silêncio perturbador e não se olhavam.

            A primeira impressão que tive foi, de fato, um déjà-vu: algumas semanas atrás, durante as comemorações do ano novo em Lisboa, estávamos dentro de um ônibus indo para uma festa. O ônibus estava lotado e, pela quantidade de sotaques, muitos passageiros eram estrangeiros. Em certo momento, um jovem português embriagado passou a gritar ofensas aos demais passageiros. Hostilizava aqueles que, em sua embriaguez, representavam uma ameaça: os imigrantes.

            Insistentemente, ele gritava: “Portugal é nosso!”. Tudo acabou quando o rapaz, tentando descer do ônibus, perdeu a proporção dos degraus e rachou a cabeça no chão. Porém, para mim essa experiência foi marcante e a mesma sensação ressurgiu nas ruas de Paris no início da tarde de 7 janeiro de 2015.

            Aparentemente, o silêncio das pessoas nas ruas era uma forma de defesa. O sotaque silenciado poderia evitar uma exposição ou uma publicidade desnecessária sobre a origem de seu proprietário. Escondê-lo parecia prudente naquele momento, horas após o ataque à redação do Charlie Hebdo.

            Como acompanho as notícias sobre a movimentação do PEGIDA – Patriotische Europäer Gegen die Islamisierung des Abendlandes (Patriotas europeus contra a islamização do ocidente) e o cenário de agitação dos movimentos da ultradireita europeia, não pude deixar de pensar que, em função do ocorrido naquela manhã, o clima na cidade ficaria bastante tenso e desconfortável para os imigrantes.

            Ainda que eu não seja um imigrante, senti antecipadamente esse desconforto e essa tensão. Por sorte a minha previsão não se concretizou e, passados dois dias, constatei que o protocolo de convívio nos vagões do metrô ainda era o mesmo e não presenciei nenhum episódio ou acontecimento que tivesse uma origem xenofóbica.

            De volta aos noticiários, a chacina dos membros do Charlie Hebdo era contada de maneira fragmentada e superficial. As únicas imagens divulgadas à exaustão foram as produzidas por testemunhas que estavam próximas da redação do jornal. Por horas assistimos apenas a um desfile de analistas políticos e sociólogos que, no melhor estilo Mãe Diná, faziam previsões e projeções dos desdobramentos daquele episódio.

            Em alguns momentos, inclusive, era possível cogitar que a imprensa brasileira estava mais informada que a francesa. Enquanto os portais e jornais brasileiros especulavam, aqui acompanhávamos repórteres entrevistando aleatoriamente pessoas nas ruas da capital francesa. Pouquíssimas imagens da ação da polícia foram veiculadas nessas primeiras horas e, quando isso ocorria, eram sempre gravações. Praticamente nada relevante foi transmitido ao vivo nos dois primeiros dias.

            Apenas na sexta-feira, quando a situação já havia sido encerrada, é que a imprensa começou a divulgar uma quantidade enorme de material sobre toda a operação policial que, ao todo, durou aproximadamente três dias. Em algumas imagens era possível perceber que vários repórteres acompanharam toda a ação e que alguns deles, inclusive, estiveram perigosamente próximos dos locais nos quais aconteceram tiroteios e nos quais pessoas foram mantidas como reféns. Ou seja, as emissoras estiveram o tempo todo metidas nos locais onde os eventos ocorreram. Contudo, nada foi divulgado antes do encerramento do trabalho policial.

            Isso chamou muito minha atenção e foi impossível não imaginar qual seria a postura da nossa imprensa brasileira e seus jornalistas nessa mesma situação.

            Também foi notável a quantidade de pessoas que saíram às ruas durante esse período. Na noite do dia 7 de janeiro os noticiários já informavam que inúmeras manifestações ocorriam pelo país. Em Paris, as praças da République e da Bastille ficaram lotadas de manifestantes durante todo o tempo e assim permaneceram até o domingo.

            Essa mobilização foi absolutamente espontânea e de modo nenhum foi uma reação a um chamamento das autoridades políticas: ela estava instalada antes de qualquer manifestação do governo. Por isso acredito que a grande marcha do domingo ocorreria de qualquer maneira, independentemente da presença dos líderes políticos internacionais ou da gratuidade do metrô.

            Falo isso para deixar claro que a marcha do domingo, 11 de janeiro, não foi um evento institucional (chapa branca, como se diz no Brasil). A atmosfera era a de um evento cívico, originado na necessidade de retomar as ruas e na comoção popular. Não existiram discursos, nem palco, nem celebridades e nem alto-falantes. Não fosse a divulgação da imprensa, a presença das autoridades seria absolutamente desconhecida. De fato, como publicou posteriormente o Le Monde, a marcha dos líderes mundiais ocorreu a uma boa distância da République, que era o epicentro do movimento, em uma pequena rua isolada por um forte aparato policial e muito distante das pessoas comuns.

            Por isso cometeram um grave erro os analistas (profissionais e, principalmente, os amadores) que associaram a presença das pessoas nas ruas com qualquer movimento de gabinete ou com arranjos políticos internacionais.

            O que ocorreu nas ruas naquele domingo simplesmente não poderia ser programado, agendado ou organizado. As ruas foram tomadas e a multidão ultrapassou largamente os limites da área de interdição do trânsito que foi estabelecido pela polícia – arisco até um palpite: a multidão ultrapassou esses limites em um raio de um ou dois quilômetros. Ninguém esperava aquela quantidade de pessoas nas ruas.

            Por exemplo, as primeiras barreiras de contenção do trânsito que encontrei estavam distantes cerca de um quilômetro da praça da République. Porém, durante a caminhada para alcançar a marcha, pude acompanhar a disputa entre as pessoas e os veículos pelo asfalto nas ruas próximas da estação Saint-Lazare. Eram três quilômetros de distância do epicentro. Nas proximidades da La Fayette, no Boulevard Haussman, já mais adiante da estação, apenas uns poucos motoristas ariscavam a passagem. Mais alguns metros e andar já havia se tornado um desafio.

            Em um evento dessa magnitude não existe discurso único. Ele reúne pessoas com diferentes perspectivas, opiniões políticas e partidárias. Assim, o slogan dominante Je suis Charlie foi envolvido de polissemia. Impossível dizer o que ele realmente significou, embora o tema da liberdade de expressão tivesse uma perceptível predominância. Porém, o tema da laicidade também foi muito presente.

            O que não presenciei em nenhum momento foram manifestações de ódio, discursos xenófobos ou discriminatórios. Inclusive pude identificar no meio da multidão algumas pessoas que utilizavam véus e outros acessórios que aqui costumam ser característicos dos muçulmanos.

            Para ser honesto, as posições mais radicais e dramáticas (e também as maiores bobagens) que pude ler e ouvir sobre toda essa situação que se passou em Paris, foram manifestadas por brasileiros através das redes sociais e através dos comentários deixados no rodapé das notícias dos portais dos grandes jornais brasileiros.

            Certamente milhares de pessoas ao redor do mundo também destilaram seu ódio e sua ignorância em seus comentários, portanto, não estou dizendo que isso foi uma exclusividade brasileira. Dessa maneira, comento aqui aquilo que observei e não pretendo que isso seja a expressão da verdade.

            Sobre a chacina, pessoalmente acredito que foi um erro terrível classificá-la como terrorismo. As pessoas mortas foram assassinadas por dois cidadãos franceses. Embora descendentes de família argelina, os dois irmãos que cometeram os assassinatos eram nascidos e foram criados na França.

            Além disso, não foi um ataque aleatório e impessoal, como deve ser um ato terrorista. Foram homicídios premeditados, contra pessoas muito bem conhecidas e identificadas pelos assassinos. E mais: a ação tem uma causa clara, objetiva e anunciada antecipadamente. Foi um ato de vingança ou retaliação, a depender da perspectiva.

            Portanto, não consigo entender como o ataque à redação do Charlie Hebdo pode ser considerado um atentado terrorista. Não existiu nada de terrorista. Todas as demais vítimas foram vitimadas pela dinâmica dos eventos. Ou seja, eram pessoas que, infelizmente, estavam no lugar errado e na hora errada. Elas não eram alvos.

            A intencionalidade e a motivação do crime esvaziam qualquer tese de atentado terrorista. Eles não queriam simplesmente espalhar o terror e provocar o pânico. Eles não pretendiam atacar uma instituição ou um símbolo nacional. Queriam cumprir uma promessa de vingança e matar pessoas específicas. É óbvio que isso teve e continuará tendo desdobramentos no âmbito institucional e na percepção de segurança dos cidadãos. Porém, em nada se assemelha ao caráter aleatório e impessoal de um ato terrorista.

            Novamente, é interessante avaliar as interpretações desse cenário surgidas entre nós, brasileiros. De tudo que li e acompanhei, parece que ninguém no Brasil ficou verdadeiramente comovido com a chacina dos desenhistas do Charlie, embora todos os textos fossem sistematicamente iniciados com um canto fúnebre protocolar: “– Apesar de ser contra a morte dos desenhistas, acho que […]”; “– Mesmo lamentando a morte dos jornalistas, penso que […]”; “– Sou contra a morte dos jornalistas do Charlie Hebdo, porém […]”.

            De um lado, pessoas acusaram o pessoal do Charlie de difundirem o ódio religioso e, de alguma forma, serem merecedores do destino que tiveram.

            De outro lado, os conhecidos intelectuais de última hora (que adoram criticar a mídia brasileira, mas passam o dia produzindo uma espécie de filosofia das manchetes!) trataram o assassinato dos membros do periódico humorístico como um dano colateral da política militar e colonial executada pelos países ocidentais no Oriente Médio e na África. Os desenhistas foram vítimas do trem da história.

            Bom, de minha parte, não concordo com nenhuma das duas posições. A primeira é sórdida e a segunda é produto de um certo tipo de esquizofrenia.

            Pela primeira vez tive a oportunidade de colocar minhas mãos em um exemplar do Charlie Hebdo. E foi justamente na edição número 1178, de 14 de janeiro, publicada depois da chacina. Em seu editorial, encontrei a melhor síntese para compreender uma dessas perspectivas: resumidamente, o editorial afirmava que as principais vítimas do fascismo islâmico são os próprios muçulmanos. Que a tentativa de compreender os movimentos fascistas islâmicos como uma reação da população muçulmana aos desmandos ocidentais é um erro ingênuo. A maior parte da população das regiões onde esses regimes estão instalados são duplamente oprimidas: pelos fanáticos fascistas e pelos exércitos ocidentais.

            Nesse mesmo editorial, encontrei outra excelente explicação para a outra abordagem: o discurso da laicidade parece favorecer única e exclusivamente os religiosos.

            Os adeptos de uma perspectiva política conservadora, em geral, são religiosos. Para eles não existe problema em defender e exigir abertamente um comprometimento do estado com sua crença religiosa. Para eles também não é problema defender o extermínio ou propagar o preconceito contra as crenças que não são alinhadas com as suas (basta consultar a opinião de um pastor evangélico neopentecostal sobre a umbanda).

            A laicidade é um problema e uma bandeira que interessa para os adeptos de uma posição política progressista e democrática. Nesse caso, a religião pode existir como uma dimensão privada da vida dos cidadãos, e é dessa maneira que o estado deve garantir que ela seja respeitada. Porém, talvez tomados por um respeito excessivo ou talvez coagidos por uma presença pública cada vez mais ostensiva dos conservadores religiosos, os progressistas deixaram de questionar e combater abertamente a intromissão das instituições religiosas nas estruturas públicas.

            Dessa maneira, parece que, pelo fato de realmente acreditarem e aderirem ao princípio da laicidade, os progressistas estão se transformando em suas primeiras vítimas. No caso do Charlie isso fica evidente: muitos questionaram os limites do humor. Será que a pergunta não deve ser outra: quais são os limites políticos da religião?

            Convertendo seus livros sagrados, seus santos e seus deuses em instrumentos de atuação política, as instituições religiosas e seus fiéis avançam para uma arena que não lhes pertence. Nessa arena, os instrumentos que o Charlie Hedbo utiliza (afinal, o periódico ainda existe) são absolutamente legítimos.

            De fato, o atual cenário político brasileiro é muito mais ilustrativo que o francês. Uma pena que não temos (ou não podemos ter?) o nosso Charlie Hedbo. Estamos desarmados e silenciados.

Rodrigo Batagello é Doutor em Ética e Filosofia pela UNB

Foto de Rodrigo Batagello

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