As manifestações e paixões tardias Por Beatriz Vicentini

Posted on 26 de março de 2015 por

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manifestação

Tomando as ruas todas, eles se sentem poderosos. Melhor do que isso, se sentem vivos, como há muito tempo não se sentiam. A multidão que os envolve faz com que eles se sintam parte e cada vez que ela se move em conjunto, berra num imenso coro, reage a algum estímulo, a adrenalina parece dar um novo ânimo a cada um.

            Pesquisas do Data Folha indicaram que nas manifestações do último dia 15, em São Paulo,  a grande maioria, ou 74% dos que ali estavam, participavam de um protesto pela primeira vez na vida. E ao se olhar os registros fotográficos ou televisivos da manifestação, facilmente se identificava grande número de adultos nas ruas, muitos deles provavelmente acima dos 50 anos. Ao contrário das manifestações contra o ex-presidente Collor de Mello, nos início da década de 1990, as mais recentes não se caracterizaram por vozes majoritariamente jovens.

            Quem lida com pessoas que estão envelhecendo sabe o quanto é familiar a elas mecanismos que envolvem sentimentos de exclusão, de menor auto-estima, de se considerarem sem espaço e devidamente valorizados. E, de repente, eis que este grupo descobre o universo das manifestações: nelas eles se igualam, se fazem ouvir em suas reclamações, se sentem revalorizados porque, afinal, se forem milhões, talvez consigam mudar o governo, talvez consigam afastar aqueles que julgam corruptos, talvez retomem benefícios que acreditam lhes tenham sido tirados indevidamente, no processo de envelhecimento e de aposentadorias precoces, mesmo que feitas por vontade própria.

            Certamente não são apenas questões ideológicas ou posturas políticas firmes, consistentes – que poderiam ter eleito outro governo se fossem assim tão amplas como parecem ser quando se vê multidões pelas ruas – que motivaram as manifestações da última semana.

            É preciso se ter olhares mais amplos, que envolvem novos mecanismos de comunicação, de interesses de mídia, de manipulação de grupos políticos – itens cuja reflexão já vem sendo amplamente divulgada. Mas, em minha opinião, há que se considerar também, em parcela significativa do grupo dos que protestam, a descoberta tardia da paixão. Quem, numa etapa de vida caracterizada pelo envelhecimento, nunca esteve anteriormente envolvido em movimentos populares, quem nunca se empenhou em alguma luta onde é necessário se jogar por inteiro, de repente descobriu a adrenalina que dá poder berrar nas ruas, ser ouvido como se importante fosse, ganhar atenção. Ou seja, descobriu como funciona o mecanismo da paixão. Num perfil conservador, como se declara boa parcela dos manifestantes, o normal é manter o status quo, não querer mudanças, se preservar a qualquer custo sem se arriscar a muita coisa ao longo da vida. E, então, de repente, eles descobrem que ser oposição também pode ser bom.

            Paixões nos levam a atitudes impensadas, deliciosas, que dão prazer. Em geral, depois que passam, a gente considera o quanto, objetivamente, fora daquele momento, agiria de outra maneira. Talvez, daqui a alguns anos, muitos destes manifestantes possam reconsiderar suas posturas, que misturam tantos sentimentos estranhos. Quem sabe, até descubram outras paixões, mais pessoais e menos influenciadas pelas multidões que não têm rosto e nem identidade. E, então, não misturem tanto alhos com bugalhos.

Beatriz Vicentini é jornalista e  organizadora do livro Piracicaba 1964 – O Golpe Militar no Interior. Ed. Unimep. 2014