Esta é mais uma tribuna de apoio ao professor Marcos Sorrentino. Mas quero fazer dela uma homenagem a esta pessoa surpreendente e extraordinária, ao seu trabalho e aos seus alunos. Acaba que também vou falar da minha trajetória pessoal, que diabo, ela cruzou tantas vezes o trabalho desse cara que não dá pra desembaraçar esse rolo.
Por uma coincidência iluminada, calhou de eu estar em Piracicaba em Abril de 2017 e de participar de uma das atividades da Jornada Universitária pela Reforma Agrária, exatamente no dia seguinte à oficina de lona do Gramadão. Já havia acompanhado em tempo real as acusações histéricas de uma associação de ex alunos pelo facebook, naquele tom já clássico de “même-da-nossa-bandeira-jamais-será-vermelha”: “O MST ESTÁ INVADINDO A GLORIOSA!!!” Isto é uma citação. Haja vergonha alheia, haja paciência.
Sobre isso já se disse muito. Só acrescento que a oficina em questão não prejudicou em nada o gramado, como alguns desinformados alardearam à época. Ao contrário, criou ainda mais significado a uma área já plena de histórias e recordações, e isso não é pouca coisa.
O início da atividade foi uma homenagem a Paulo Kageyama, falecido há um ano, e Paulo Freire, seguido de uma mesa redonda. Após a emoção das homenagens, Lembro de estar sentada ao lado do Marcos e de termos trocado umas impressões sobre as denúncias, eu entre jocosa e enfurecida, ele concordando com as tribunas que já profetizavam que essa onda de denúncias histéricas podia ter desdobramentos bizarros.
Aquela foi uma noite emocionante pra mim. É raro ter a oportunidade de rever o Marcos, e estar com ele numa homenagem “aos Paulos” foi um privilégio. Kageyama e Marcos foram meus orientadores quando passei meus 9 meses de residência no Acre, cujo relatório foi determinante no aceite da minha proposta de mestrado, na Université de Pau et des Pays de l`Adour, e tiveram uma enorme influência na minha formação. Seguramente foram responsáveis por um crescimento profissional que eu nunca teria alcançado sem os desafios que me propuseram.
Aliás, foi depois de formada que tive a dimensão do trabalho que Marcos Sorrentino realizava. Tanto que minha dissertação de mestrado e minha tese de doutorado analisaram trabalhos que foram direta ou indiretamente orientados por ele. Modéstia à parte ambas foram muito elogiadas.
Um dos principais elogios à tese veio das pessoas da banca que trabalham diretamente com aménagement (algo entre gestão e manejo). Eles ficaram maravilhados com a dimensão de possibilidades de mudança e sustentabilidade dos trabalhos do Marcos, com a coragem e competência em trabalhar assuntos complexos sem reduzir as complexidades, ao contrário, sublimando-as e fazendo delas o ponto de partida humano de onde se ergueria um futuro possível.
Foram inúmeras conquistas destas pesquisas em termos de governabilidade, empoderamento da população mais vulnerável, melhorias socioambientais em locais chave para produção de água, até o conselho tutelar (em alguns casos todos os conselhos municipais) de cidades pequenas se beneficiou delas. Mas acho que o que mais impressiona as pessoas em São Paulo passa pelo estômago.
Papo reto: se você já comeu uma pizza ou pão assados em forno à lenha em São Paulo, você deve essa pizza, ou esse pão, ao Marcos.
Simples assim. Até a década de 90 os estabelecimentos que usavam forno a lenha em SP eram obrigados a pagar uma taxa ao estado para reflorestar áreas que seriam destinadas à produção de madeira para venda. CLARO que o estado não fazia nada disso, e os padeiros já estavam tendo que comprar a madeira cada vez mais de longe.
Marcos fortaleceu o conceito de reposição florestal e ajudou a criar duas ONGs que, junto com uma renca de padeiros e pizzaiolos de SP, entraram na justiça pra essa taxa poder ser paga diretamente às associações. Venceram. Hoje se você prestar atenção, em quase todas as pizzarias de SP você vai ver um selinho “nós reflorestamos” e o nome da associação. E São Paulo voltou a ter madeira pra queimar nos fornos.
Marcos tem esse tipo de garra, de capacidade de mobilização, de visão de um futuro possível, e a coragem de empreender ações que potencializam a realização de suas visões. É um professor ímpar, empenhadíssimo em seu trabalho, que realiza o tipo de prática dessa polêmica há mais de 30 anos na ESALQ. E isso nunca deu o menor tipo de problema. Muito pelo contrário. A instituição está muito satisfeita em estar associada aos seus projetos e dividir assim os louros do seu trabalho.
Enfim, durante a semana foi feita uma denúncia (corajosamente anônima) e Marcos está sob sindicância justamente POR USAR A LOGOMARCA DA ESALQ DURANTE UM EVENTO SEM AUTORIZAÇÃO.
Quer dizer então que quando é pra levar o nome da Gloriosa ESALQ em projetos celebrados internacionalmente tá limpo, mas pra uma semaninha de trabalho com os mais oprimidos precisa de mais documentos que o carimbador maluco consegue inventar? E não vou nem falar nos dois pesos e duas medidas que são os eventos das multinacionais dentro da escola, TRUCO que cada uma destas atividades questionáveis (sim, eu considero que fazer pesquisa pra empresas privadas com dinheiro público é pra lá de questionável) passe por uma reuniãozinha de departamento sequer. Na década de 90 tinha engenheiro de empresa ligada ao IPEF com o logo da ESALQ no cartão gente!!
Mas na real, até aí ainda estava dentro de uma realidade esperada de um governo golpista, num estado governado desde sempre pelo PSDB, dentro de uma universidade sucateada há mais de 20 anos pelo dito governo. O atual governador tentou vender sumariamente 30% da área da ESALQ, mas o problema são atividades docentes, claro.
Aí esses dias, um perfeito calhorda, desconhecido da academia, ex militar, convoca uma legião de bandidos (não há outro nome pra isso) pra vir se contrapor a uma manifestação pública de apoio ao Marcos, num discurso repleto de mentiras mal inventadas que só enganam quem quer ser enganado, regado a incríveis slogans vazios do naipe “força e honra”, insultos, ameaças de violência, organização de grupos armados e por aí vai.
Uma pessoa que chama sem terra de “vagabundo baderneiro” nunca pegou numa enxada pra plantar uma roça na beira de uma rodovia. O MST é o maior produtor de arroz orgânico da América Latina, são recebidos pelo Papa pois fazem parte do conselho do Vaticano, responsáveis, desde 2014, por boa parte da erradicação da fme, segundo a FAO. Quem nega essa realidade nunca se interessou sobre o que é agricultura familiar e camponesa, sobre erradicação da miséria e faria muito bem em participar da atividade pra ver se aprende um pouco, em vez de ameaçar professor.
Esta tribo não faz a menor IDEIA do que seja uma atividade acadêmica, nunca demonstrou interesse pela ESALQ que fosse além do jardim fofo, cartão postal da cidade. Onde estava essa gente quando o atual governador tentava rifar o horto de Itatinga? Ou quando os cortes de gastos, que impedem até realização de bancas presenciais, foram aprovados?
A ESALQ não é um cartão postal. A ESALQ faz parte de uma baita de uma Universidade, fundada, entre outros, por Lévi-Strauss. O dia em que sargentinhos vierem dizer o que tem que acontecer numa U-NI-VER-SI-DA-DE, rapaz, bora fechar e transformar em jardim mesmo. Mas aí pode dar adeus a coisas muito interessantes como…
-A dignidade e melhoria de vida de inúmeras pessoas afetadas pelos projetos em que ele se envolveu. Dá muita gente.
-Qualidade da água.
-Pizza.
-Pão.
Acredito que não seja por acaso que uma homenagem ao Paulo Kageyama, que participou ativamente da luta clandestina contra a ditadura, seja censurada e alvo de tanto ódio, mas é ainda mais fonte de vergonha, ou orgulho, ou uma estranha mistura dos dois.
Não sei se essa carta vai ajudar o Marcos, provavelmente muito pouco. Talvez seja só mais uma demonstração de apoio e um testemunho de gratidão e de carinho. Faz parte de uma eterna preocupação em me posicionar coerentemente, coisa que anda curiosamente cada vez mais fácil de ser feita.
Mariana Crepaldi de Paula
Engenheira Florestal pela ESALQ-USP
Mestra e Doutora em Géographie et Aménagement pela Université de Pau et des Pays de l`Adour
Pos Doc na UFG-Regional Jataí.
Abaixo um link com o vídeo do próprio Marcos falando do ocorrido na Câmara de Vereadores de Piracicaba
Posted on 18 de dezembro de 2017 por blogdoamstalden
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