Sol escaldante em mais um dia de trabalho, rotina e minutos contados. Passo pelas ruas automaticamente, me preocupando apenas com a lista de coisas a fazer, se o tempo será suficiente; se haverá uma fila pra me deixar ainda mais cansada de esperar por coisas que nem sei mais. Sinto falta de momentos únicos, sejam eles no sorriso fascinado de uma criança, que ainda está descobrindo as sensações do mundo, ou de uma troca de olhares que dispensa palavras.
E na mesma rua de sempre penso na loja.
Esta tem muitas prateleiras, agradavelmente organizadas pelas iniciais dos autores. Este é meu refúgio em dias de muito sol e pouca vontade. Passeando pelos assuntos, pelas cores e capas os pensamentos vão para essas pessoas que tiveram a grandiosidade de escrever algo duradouro e valioso. Mas nesse dia me deparo com uma delícia para meus olhos: pilhas enormes de livros por arrumar. Explico: tenho grande prazer em organização, um prazer talvez neurótico, mas também terapêutico.
Prontamente sento-me à frente de tanta informação a ser absorvida por minha mente que agora se esquece das horas. As pilhas são altas, deliciosamente bagunçadas e irregulares. Começo a missão: filosofia, literatura, biologia, economia, sociologia, teatro, mitologia e psicanálise. Muitas pérolas para apreciadores de sebos. Dedico-me a abrir estes livros empoeirados e olhar página por página, procurando por padrões e raridades. Conforme me encontro com esses pedaços de uma vida sinto algo diferente.
A vontade de continuar procurando me instiga, mas o relógio me avisa das horas. Antes de ir, porém, pergunto ao proprietário acerca da origem destes livros. Antes de me contar, eu já sabia que eles eram de alguém que tinha morrido recentemente e que esse homem – porque minha intuição me disse – era um professor. Após a confirmação destes fatos, saio pela rua, atordoada, tentando explicar o que eu sentia em relação a uma pessoa e seus objetos, que até então me eram desconhecidos.
No outro dia, nova visita, para descobrir maiores preciosidades e imaginar esse homem sem rosto que agora fazia parte dos meus pensamentos. Erudito, esclarecido, em alguns momentos fiquei pensando em sua voz, em como seria assistir sua aula ou entrar no lugar em que todas essas pilhas formassem uma biblioteca organizada. Por que os seus quiseram se desfazer de tamanho tesouro? Se isto era tudo o que havia sobrado dele porque vender toda essa história, todos estes momentos e anos de vida? Não entendo e ainda revirando as pilhas meu coração pára. Dentro de um destes livros sinto com minhas mãos trêmulas um pedaço de papel dobrado. Olho para os lados, ninguém presta atenção em mim. Abro a folha e leio uma espécie de resumo de conceitos de economia. Seriam anotações de uma leitura, feitas sob uma luz artificial numa escrivaninha antiga? Ou um esquema resumido para a apresentação de uma aula? A caligrafia tremida, porém decidida me fascina. As horas, novamente. Vou embora, olhando para trás.
Penso nas manhãs livres e digo para mim mesma: volto amanhã sem hora para ir embora. Olhar todas as partes da história deste homem conhecido e desconhecido. Entender o porquê. Talvez encontrar mais alguma coisa, um pedaço de papel antigo ou até mesmo um nome.
E aí vem o fim. No dia seguinte as pilhas já foram distribuídas. O homem já foi dissolvido entre prateleiras. Sem nome. Sem explicações. Talvez a dor de sua partida tenha sido intensa demais, e os que ficaram não queriam lidar com a presença do homem através de seus livros. Talvez eu tenha, inconscientemente, me comparado ao homem que amava seus livros. Sim, amava-os porque isso é perceptível aos verdadeiros adoradores de suas estórias. Livros amados e cuidados têm certa melancolia, se você prestar bastante atenção eles podem falar sobre seus donos através de suas páginas. E o fim do homem pode ter me lembrado do meu, que pode se dar súbita e inexplicavelmente; ou então lenta e dolorosamente. Qual teria sido seu fim?
Nunca poderei saber. A não ser que me seja revelado. Ainda guardo o pequeno pedaço de vida que encontrei em um de seus livros. Talvez ele seja meu.
Rebeca Serrano é Socióloga.
Publicado originalmente em:
http://fendamel.blogspot.pt/2012/08/o-homem-de-rebeca-serrano.html
Valéria Pisauro
22 de agosto de 2012
Rebeca, adorei sua viagem poética, na verdade viajei junto e senti vontade de abraçar todos os meus livros – minha herança e lembrança!
Parabéns!
Rebeca
22 de agosto de 2012
Nossa, obrigada! Fico feliz!!!
blogdoamstalden
22 de agosto de 2012
Eu gostei muito, mas receber um elogio da Valéria Pisauro, que entende muito de literatura, é excelente, sabe?
Júlia
22 de agosto de 2012
Parabéns Rebeca, Como a Valéria disse… eu viajei junto também! e realmente, muito boa sua viagem poética!
Antonio Carlos Danelon
23 de agosto de 2012
Beleza de texto.
Pedro Castro
25 de agosto de 2012
Sensacional, primeiro vez que leio um texto o qual me prendeu tanto.Parabéns !
C.Kawatti
9 de setembro de 2012
Lindo texto, parabéns. Ótimo blog, com textos muito bons tanto do proprietário quanto dos outros escritores …com certeza voltarei mais vezes quando o tempo me permitir..
blogdoamstalden
9 de setembro de 2012
Obrigado Charles. Seja bem vindo para ler e publicar. Abraço.
Rebeca
10 de setembro de 2012
Obrigada pelos elogios! Fico feliz!!!