Quando já estava doente, Corado Caglieri disse que gostaria de ter escrito um livro. Queria ter contado de sua vinda da Itália para o Brasil, ainda pequeno. Lembrava tão vivamente da cena do navio se afastando do porto e dos lenços dos parentes acenando, ficando cada vez menores até desaparecerem. Depois, olhando para o outro lado, viu o mar imenso e se assustou. Sentiu medo daquele infinito de água, vento e horizonte e abraçou-se às pernas do pai. Sentiu conforto no seu cheiro familiar e no toque de suas calças de linho e, ainda agarrado a elas, ouviu a voz do pai o acalmando: “non abbiate paura, non abbiate paura…” (não tenha medo, não tenha medo…).
Foi assim, ele me contou, que seguro pela presença do pai e de suas palavras, controlou o medo da travessia daquele grande oceano. Depois, já chegados ao Brasil, lembrava-se das cores vivas sob o sol forte e, de que ainda do navio recém atracado, viu o contraste maravilhoso do amarelo de grande cachos de bananas sobre as costas negras e fortes dos estivadores do porto. Esta foi a primeira visão marcante que teve de nosso país: o dourado das frutas sobre o negro luzidio das costas dos carregadores, tudo sobre o sol forte e brilhante.
Outras imagens viriam depois. A cidade de São Paulo nos anos cinquenta, suas casas, seu povo, o colégio onde estudou, as ruas, as lojas, os cheiros, os gostos, todas as visões e sensações que nos são tão marcantes quando somos criança, ainda mais em outro pais. Queria ter contado em um livro, ainda, um dos melhores momentos de sua infância brasileira. Aquele em que chegavam as cartas vindas da Itália, dos parentes que lá ficaram. O carteiro as entregava durante o dia, mas os que estavam em casa não as abriam. Esperavam pela noite com a alegre ansiedade da expectativa. Quando a família estava reunida, o pai abria as cartas e as lia em voz alta. Queria ter contado como era bom aquele momento em que reunidos aqui, a família encontrava-se com os de lá, e da tranquilizadora sensação das palavras iniciais de cada carta, que sempre começavam do mesmo modo: “Noi stiamo tutti bene” (estamos todos bem…).
Corado queria ter escrito o livro da sua vida, talvez na tentativa, tão humana, de comunicar a experiência única e fantástica que é viver, existir, sentir. Eu o incentivei, disse que começasse imediatamente, que gravasse, se escrever fosse penoso. Assegurei que ele iria escrever, iria sobreviver para fazê-lo. Mas a doença já lhe levara muito das forças e, embora ele tenha lutado ainda um bom período, não teve o tempo necessário.
Ele se foi, assim como outras tantas pessoas que conheci, com quem tive o prazer e a honra de dividir um período de minha existência. Amigos, parentes, colegas. Tantos já, tão mais do que eu gostaria, tantos que fazem tanta falta.
Eu não sei que “mar” eles atravessaram. Não sei nem mesmo se existe uma “travessia” e um outro “porto” colorido e alegre ao fim dela. Minha mente racional duvida. Mas no íntimo, no fundo de minha mente, talvez apenas cheia de vontade de viver, existe uma esperança de “outro porto” e, quem sabe, de ver, aumentando devagar, os lenços acenados por aqueles que foram antes de nós e nos esperam agora no cais.
É preciso nos permitir desejos como este. E eu vou um pouco além. Permito-me o desejo de que todos aqueles que partiram, tenham podido sentir o consolo de alguém lhes dizendo, ao início da travessia: não tenha medo, não tenha medo…
Gostaria de ser capaz de honrar meu amigo Corado Caglieri, traduzindo aqui a beleza de suas palavras naquele dia em que me contou da sua viagem. Mas com certeza eu não consegui. Nem mesmo o melhor escritor do mundo seria capaz disso. Muito menos eu que nem escritor sou. Quisera conseguir. E quisera ainda mais: que meus escritos e minhas lembranças dele e de todos os que já partiram, fosse como uma carta a chegar a eles, apenas com as palavras: “Noi stiamo tutti bene” (estamos todos bem…).
Valéria Pisauro
1 de novembro de 2012
Que lindo! Extremamente emotivo….Parabéns!
blogdoamstalden
4 de novembro de 2012
Obrigado Mestra. Bjs.
Carla Betta
2 de novembro de 2012
Comovente e muito bem escrito!
blogdoamstalden
4 de novembro de 2012
Obrigado Carla. Fazia tempo que você não comentava.Eu estava sentido falta. Abraço.
heloisa angeli
2 de novembro de 2012
Fernando
Simplesmente vivenciei mentalmente cada detalhe das cenas que você descreve tão bem.
Creio, de todo coração e com toda minha alma, que SIM, meu amigo querido, há um outro porto seguro que nos espera e onde, um dia nos reencontraremos …
blogdoamstalden
4 de novembro de 2012
Heloísa, obrigado pelas suas palavras. Mas para quem ouviu o Corado contanto, o texto ficou muito aquém do que era a emoção dele. Eu espero que o outro porto exista sim. E que seja mais justo do que este. Abraço.
Ana Camilla Negri
23 de janeiro de 2013
Muito bonito o texto… Também me lembro do Corado contando essas histórias na casa da praia da Tania! Lembro das histórias do Colégio do Mosteiro São Bento, em SP.
Kamila Kantovitz
23 de janeiro de 2013
Q lindo!!
Anônimo
23 de janeiro de 2013
Luis Fernando, realmente eu nao havia tomado conhecimento do texto acima, por ocasiao da publicacao eu estava nos EEUU e so hoje, ( dia 23/01/2013), recebi de minha nora um email me falando da existencia do texto e o endereco do blog para ler.
Gostei muitissimo, me emocionei, voce foi fiel e feliz ao reproduzir as historias mencionadas, me fez recordar….reviver…. ouvir…. dos proprios labios do Corrado….Com certeza a mae Rosina, o pai Luige e principalmente a avo Cesarina acenaram os lencos e o receberam no
cais, no outro PORTO. De onde ele estiver ficou muito feliz ao ler essa carta, junto aos parentes que ja partiram, com a maravilhosa noticia de que ” Noi stiamos tutti bene”.
Vou enderecar a leitura para os filhos Adriana, Luiz, Manuela e Hermman.Tambem enviarei para Maria Adelaide (sua prima irma, muito querida pelo Corrado,que mora em Uberlandia), e participou dessa mesma travessia da Italia para o Brasil.
Parabens e muito obrigada pelo texto, e lindo!!!!!!!!!!!!
‘
blogdoamstalden
30 de janeiro de 2013
Olá Tânia. Que bom que vc. gostou. Eu estava devendo este texto à memória do Corado. Mas ainda preferia que ele tivesse escrito o livro. Sou capaz de me lembrar da emoção da sua fala e da beleza das imagens que ele passou. Como o “amarelo das bananas nas costas dos estivadores negros, sob o sol…” Eu nunca conseguiria fazer jus a estas palavras, mas foi minha homenagem a ele. Abraço.
Anônimo
23 de janeiro de 2013
Ops esqueci de assinar o comentario acima, um grande abraco ,
Tania Maria Rosamilia
Anônimo
24 de janeiro de 2013
da Italia…..Obrigado pela homenagem a meu pai! Voltei a quando eu ero pequena e ele contava a mim e meus irmaos sobre as esperiencias que havia vivido na sua infancia…..Foi emocionante como disse Tania! Pena que ele nao teve tempo suficiente para escrever um livro sobre sua vida, como queria. Tenho certeza que teria sido uma historia unica com uma viagem interior profunda! Adriana
blogdoamstalden
30 de janeiro de 2013
Adriana. Também acho uma pena que seu pai não tenha escrito o livro. Meu texto é uma homenagem a ele, meu amigo, um tributo à sua memória. Gostaria de ser melhor para que o texto traduzisse mais. Agradeço o comentário. Abraço.