A Vida e o “Mar”. Por Luis Fernando Amstalden

Posted on 1 de novembro de 2012 por

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Quando já estava doente, Corado Caglieri disse que gostaria de ter escrito um livro. Queria ter contado de sua vinda da Itália para o Brasil, ainda pequeno. Lembrava tão vivamente da cena do navio se afastando do porto e dos lenços dos parentes acenando, ficando cada vez menores até desaparecerem. Depois, olhando para o outro lado, viu o mar imenso e se assustou. Sentiu medo daquele infinito de água, vento e horizonte e abraçou-se às pernas do pai. Sentiu conforto no seu cheiro familiar e no toque de suas calças de linho e, ainda agarrado a elas, ouviu a voz do pai o acalmando: “non abbiate paura, non abbiate paura…” (não tenha medo, não tenha medo…).

Foi assim, ele me contou, que seguro pela presença do pai e de suas palavras, controlou o medo da travessia daquele grande oceano. Depois, já chegados ao Brasil, lembrava-se das cores vivas sob o sol forte e, de que ainda do navio recém atracado, viu o contraste maravilhoso do amarelo de grande cachos de bananas sobre as costas negras e fortes dos estivadores do porto. Esta foi  a primeira visão marcante que teve de nosso país: o dourado das frutas sobre o negro luzidio das costas dos carregadores, tudo sobre o sol forte e brilhante.

Outras imagens viriam depois. A cidade de São Paulo nos anos cinquenta, suas casas, seu povo, o colégio onde estudou, as ruas, as lojas, os cheiros, os gostos, todas as visões e sensações que nos são tão marcantes quando somos criança, ainda mais em outro pais. Queria ter contado em um livro, ainda, um dos melhores momentos de sua infância brasileira. Aquele em que chegavam as cartas vindas da Itália, dos parentes que lá ficaram. O carteiro as entregava durante o dia, mas os que estavam em casa não as abriam. Esperavam pela noite com a alegre ansiedade da expectativa. Quando a família estava reunida, o pai abria as cartas e as lia em voz alta. Queria ter contado como era bom aquele momento em que reunidos aqui, a família encontrava-se com os de lá, e da tranquilizadora sensação das palavras iniciais de cada carta, que sempre começavam do mesmo modo: “Noi stiamo tutti bene” (estamos todos bem…).

Corado queria ter escrito o livro da sua vida, talvez na tentativa, tão humana, de comunicar a experiência única e fantástica que é viver, existir, sentir. Eu o incentivei, disse que começasse imediatamente, que gravasse, se escrever fosse penoso. Assegurei que ele iria escrever, iria sobreviver para fazê-lo. Mas a doença já lhe levara muito das forças e, embora ele tenha lutado ainda um bom período, não teve o tempo necessário.

Ele se foi, assim como outras tantas pessoas que conheci, com quem tive o prazer  e a honra de dividir um período de minha existência. Amigos, parentes, colegas. Tantos já, tão mais do que eu gostaria, tantos que fazem tanta falta.

Eu não sei que “mar” eles atravessaram. Não sei nem mesmo se existe uma “travessia” e um outro “porto” colorido e alegre ao fim dela. Minha mente racional duvida. Mas no íntimo, no fundo de minha mente, talvez apenas cheia de vontade de viver, existe uma esperança de “outro porto” e, quem sabe, de ver, aumentando devagar, os lenços acenados por aqueles que foram antes de nós e nos esperam agora no cais.

É preciso nos permitir desejos como este. E eu vou um pouco além. Permito-me o desejo de que todos aqueles que partiram, tenham podido sentir o consolo de alguém lhes dizendo, ao início da travessia: não tenha medo, não tenha medo…

Gostaria de ser capaz de honrar meu amigo Corado Caglieri, traduzindo aqui a beleza de suas palavras naquele dia em que me contou da sua viagem. Mas com certeza eu não consegui. Nem mesmo o melhor escritor do mundo seria capaz disso. Muito menos eu que nem escritor sou. Quisera conseguir. E quisera ainda mais: que meus escritos e minhas lembranças dele e de todos os que já partiram, fosse como uma carta a chegar a eles, apenas com as palavras: “Noi stiamo tutti bene” (estamos todos bem…).

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