O Cidadão e a Fila. Por Luis Fernando Amstalden

Posted on 31 de janeiro de 2013 por

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Aconteceu num grande supermercado da cidade. Na fila ao meu lado, reservada aos clientes idosos, com deficiência, gestantes ou com crianças pequenas, um homem de minha idade esperava sua vez. Ao lado dele, na verdade em torno dele, brincando, uma garota de uns sete anos. A garota não era “de colo”, condição para a qual é reservado aquele caixa, mas atrás dele vários idosos aguardavam sua vez. Os idosos e clientes de outras filas, eu inclusive, lançavam olhares de desaprovação ao indivíduo com a menina, mas o homem, de dentro de suas bermudas e do alto de seus chinelos havaianas “da moda”, retornava os olhares com arrogância. No momento em que chegou sua vez, a operadora do caixa disse-lhe, para o contentamento de todos, que aquela fila não era para ele, e sim para pessoas em condições especiais.

O “cidadão” não se fez de rogado. Disse em altos brados que estava ali porque se fazia acompanhar da filha pequena, portanto aquela fila era a dele também. A operadora retrucou (com bastante educação, posso atestar) que a criança era já grande, não necessitando do colo do pai e, portanto, podendo esperar nas outras filas. Não houve acordo. O homem exigiu falar com o gerente. Um supervisor, atraído pelos gritos, veio ver o que acontecia. Diante do cliente alterado, disse a moça do caixa que o atendesse.

Isso tudo já foi bem ruim, mas o pior veio depois. Com um sorriso sarcástico no rosto, o homem ao sair do caixa, olhou para a moça (que estava bastante constrangida) e aos outros clientes, e disse em voz alta: “manda quem pode, obedece quem tem juízo”. Sempre detestei esta frase, que considero de um misto de arrogância e resignação dos oprimidos ao mesmo tempo. Mas naquele momento, dito por aquele indivíduo, com aquela expressão, a frase causou-me uma grande irritação. Mais tarde, comentei com um colega o evento e ele respondeu que a atitude do indivíduo era errada, claro, mas também era uma reação às eternas filas, espera e ineficiência das coisas no Brasil. Na visão de meu colega, burlar as regras num país onde elas não privilegiam a população, é um recurso de sobrevivência que se forjou diante da sociedade de privilégios que a elite brasileira sempre cultivou.

Desta forma, não somente as filas, mas todos os demais jeitinhos e burlas das regras seriam compreensíveis no contexto de uma sociedade desigual. Penso que o raciocínio de meu colega está correto. Podemos entender o fenômeno do jeitinho e mesmo o da arrogância daquele sujeito desta maneira. Mas o resultado prático também pode ser compreendido pelo mesmo raciocínio. Ocorre que se nossa sociedade acaba por aceitar que, dado seu caráter elitista, somente o burlar das regras e o privilégio são eficientes, então a ideia do irregular, do ilegal ou do “acima da lei” passa a ser culturalmente aceita e legitimada. Exemplificando: o sujeito que conseguiu ser atendido na fila preferencial graças ao “uso” da companhia da criança (que não tinha idade para isso) saiu “feliz”, contente. Logo ele vai repetir o comportamento em outras oportunidades e situações, tais como na fila do banco, estacionando em local proibido, oferecendo um suborno etc. E vamos além. Aqueles que estavam por perto vão desanimar de seguir as regras e, talvez, na próxima vez, vão fazer o mesmo, vão burlá-las. Cria-se então uma situação de “aprendizagem” de que a “regra real” é a de se desrespeitar as regras formais. A criança que acompanhava o pai, naquele momento, teve exatamente esta lição e muito provavelmente vai repeti-la ao longo de sua vida.

O resultado, por sua vez, é duplo. Por um lado as regras formais são constantemente desrespeitadas, gerando uma situação em que aquele que as segue e é honesto, acaba penalizado, prejudicado. Por outro lado, a situação de privilégio se mantém indefinidamente, mantendo a sociedade injusta, ineficiente e elitista. E penso que o pior de tudo é que o ato de reclamar ou de clamar pela correção, acaba sendo esvaziado. Como alguém pode reclamar que as filas são “furadas” se ele próprio as “fura”? Transporte esta situação para todo o resto e você entende muito do Brasil. Como eu posso reclamar do trânsito que ninguém respeita, das leis quebradas, dos privilégios de muitos ao serem julgados, da corrupção e, no limite, do crime, se eu próprio, sempre que tenho a oportunidade, quebro as regras, sou “corrupto” ou dou um jeitinho de me safar de uma situação? Nós precisamos urgentemente de uma “revolução cultural”. Uma revolução de ética e cidadania. Se você concorda, proponho-lhe que faça esta revolução, que mude seu comportamento. Experimente ir aos poucos. Tente algo parecido com a técnica eficaz de algumas associações de combate ao vício em álcool. Só por hoje, tente não estacionar em local proibido, tente não pedir para o professor dar um jeitinho na nota do seu filho, tente não furar a fila, tente não recorrer daquela multa que você sabe que mereceu. Só por hoje, tente mudar o seu modo de pensar, e daí você terá direito de reclamar quando as coisas não funcionarem. E, quer saber? Acho que com o tempo você vai parar de reclamar porque elas vão funcionar.

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