A Freira, o Padre e o Papa. Por Luis Fernando Amstalden

Posted on 21 de fevereiro de 2013 por

6



Cristo carregando a cruz - Hieronymus BOSCH

Em 2007 quando Bento XVI visitou o Brasil, a Rede Globo apresentou no Jornal Nacional uma série de reportagens sobre o evento. Numa delas mostrou-se dois “lados” da Igreja. Em um lado uma freira negra que vivia na periferia de São Paulo e lá tocava uma creche para mães faveladas. No outro lado o padre Marcelo Rossi. A freira entrevistada falou da sua esperança de que o pontífice se atentasse para os pobres, para a vocação da Igreja e do cristianismo em questionar as injustiças sociais e da necessidade do Papa, enquanto líder espiritual, tomar uma posição clara frente a tais injustiças e a novos problemas. Já o padre Marcelo mal fez uma declaração e desta eu também me lembro muito bem. Ele afirmou que “toda vez que a Igreja subiu no palanque, não deu muito certo…”. Nunca fui admirador do padre Marcelo (me perdoem os seus fãs, mas esta é minha opinião e eu a sustento), no entanto naquele momento meu conceito sobre ele passou de ruim a péssimo (mais tarde passou ao grau de repulsa, mas esta história eu conto em outra oportunidade).

E passou de ruim a péssimo não tanto porque ele tenha declarado uma linha de pensamento pela qual a Igreja deve se atentar mais a assuntos espirituais (ideia implícita na sua fala). Eu não concordo com isso e sou francamente favorável a posição da freira, mas o padre tem direito a sua opinião também. O que me incomodou é a ignorância de alguns fatos demonstrada por Rossi. O primeiro fato que o padre parecia ignorar é o de que as posições políticas são algo que tomamos todos os dias, o dia todo. Política é a negociação do poder e, sendo as nossas relações sociais envoltas pelo poder, o tempo todo fazemos “política”. Em outras palavras, se você vota, está sendo político, se defende uma ideia social (o aborto ou sua proibição, por exemplo) está assumindo uma posição política, se você se posiciona contra o desmatamento ou é crítico da desigualdade social, também está sendo político. E, pelo contrário, se você se omite disto tudo, se assume uma postura que considera para além deste mundo (um conceito que você pode, talvez, chamar de “espiritual”) também está assumindo uma postura política, uma postura de indiferença pelo que acontece no mundo e na sociedade. É como se você desse “votos nulos” ou “votos em branco” existenciais e se abstivesse de qualquer opinião ou crítica, se abstivesse de existir socialmente.

E daí vem o segundo fato que o padre parece ignorar. A Igreja nunca abdicou de fazer política, nem historicamente nem agora. João Paulo II agiu em concordância com Ronald Reagan para combater a extinta URSS. E não foi só isso, ele também diminuiu a influência dos bispos, arcebispos e padres progressistas do Brasil, gente como Don Helder Câmara e Don Paulo Evaristo Arns, além de frei Leonardo Boff. Antes dele, João Paulo I, Paulo VI e João XXIII adotaram posturas diferentes, em prol de uma Igreja mais engajada e liberal. Aliás, eu me lembro muito bem da uma declaração de João Paulo I: “vendam os ornamentos de ouro da Igreja para dar de comer aos pobres”. Tudo isso são posturas políticas e, dado o espaço limitado, vou me abster de outros milhares de exemplos históricos mais antigos. O importante é perceber que a Igreja subiu no palanque sim, e sobe ainda. Sobe de um lado ou do outro, dependendo dos interesses do seu comando. Aliás, se analisarmos bem, todas as igrejas o fazem, não só a católica. Não sei o padre Rossi teve aulas Sociologia e História da Igreja no seminário, mas se teve, algo não correu bem nestas aulas.

Mas agora, vamos ao Papa. Bento XVI foi o sucessor e, antes disso, foi um dos auxiliares mais próximos de João Paulo II. Não sou teólogo e nem especialista no Vaticano, mas qualquer um que se disponha a ler um pouco, verá que Bento sucede João Paulo II num projeto conservador, politicamente mais próximo do clero tradicionalista europeu e americano do que dos progressistas da América Latina, África e Ásia. João Paulo II se preocupou, como eu já disse, em minimizar a influência dos religiosos mais engajados socialmente, que tiveram um papel muito importante na defesa da democracia e dos direitos humanos nos anos setenta e oitenta. O projeto político (reafirmo e sustento) dos dois últimos pontífices favoreceu um clero mais dócil socialmente e, na minha opinião, muito mais acomodado. Um clero que prefere não se envolver em “polêmicas” e prefere fazer “showmissas” ou dançar a “aeróbica do Senhor”, como o padre Marcelo, do que ir à periferia lutar pelos pobres, como a freira.

Agora Bento XVI renuncia. Os especialistas apontam o conflito entre conservadores e progressistas como uma das causas da renúncia. Não consegui ver, até este momento, em nenhum lugar uma análise mais detalhada dos perfis dos “progressistas”, mas a julgar pela estrutura do colégio dos cardeais montada pelos dois últimos papas, temo que o próximo será um dos conservadores. O padre Marcelo e seus congêneres midiáticos vão continuar prosperando. Minha expectativa, no entanto,  é a de que, assim como aquela freira (cujo nome não me lembro, infelizmente, até porque ela não se autopromove), muitos outros religiosos e leigos continuarão nas periferias e denunciando as injustiças. Eles não são  maioria, mas são, a meu ver, o “sal da terra” a que Cristo se referia.

Posted in: Artigos