Persépolis. Por Valéria Pisauro

Posted on 9 de março de 2013 por

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 “Se as pessoas virem o filme e disserem que essas pessoas são seres humanos como nós, o filme teve sucesso”, Marjane Satrapi.

I – INTRODUÇÃO:

“Persépolis”

França, 2007 – 95 min.

Drama /Animação adulta

Direção:

Marjane Satrapi e Vincent Paronnaud

Roteiro:

Marjane Satrapi e Vincent Paronnaud

Elenco:

Chiara Mastroianni, Catherine Deneuve, Danielle Darrieux, Simon Abkarian, Gabrielle Lopes, François Jerosme.

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“Persépolis” é um longa de animação de 2007 de autoria de Marjane Satrapi, ilustradora e cartoonista, nascida em Rasht, Irã, em 1969 e Vincent Paronnaud.

Trata-se da adaptação dos quatro volumes da aclamada graphic novel homônima e autobiográfica de Satrapi, publicada na França entre 2000 e 2003, e que apesar da fidelidade aos textos e ilustrações de origem, tem vida própria.

Indicada ao Oscar e ao Globo de Ouro da categoria, “Persépolis” sagrou-se vencedor do prêmio Cesar além de faturar a estatueta do júri especial de Cannes.

O tomo inicial de “Persépolis” foi lançado na França, em 2001, por uma pequena editora independente. Logo se tornou um fenômeno de crítica e público e, no mesmo ano, foi premiado no Festival de Angoulême, na França. Rapidamente a série se espalhou pelo mundo, sendo publicada na Itália, Holanda, Portugal, Espanha, Alemanha, Inglaterra, Israel, Suécia, Finlândia, Noruega, Japão, Coréia do Sul, Hong Kong, Turquia e Estados Unidos.

No primeiro livro, Marjane Satrapi, então com 9 anos, viu a Revolução Islâmica sob a ótica de uma criança. O segundo focou a guerra contra o Iraque. No terceiro, ela se auto-exilou, aos 14 anos, na Áustria, pois os pais acreditavam que ela teria uma educação melhor fora do país, onde quase morreu de frio. No quarto, a autora/personagem narra seu retorno ao Irã para cursar a universidade, já adulta.
O material foi recentemente reunido no Brasil pela Companhia das Letras em uma edição única.

Evidentemente, é impossível comparar a história das 352 páginas impressas de “Persépolis” a um filme com 95 minutos, além da dedicação e esforço necessário para produzir um filme de hora e meia a 12 imagens por segundo. Dessa forma, o longa-metragem, preto e branco (apenas os momentos inicial e final têm cor) foca nos “melhores momentos” do livro e tem como seu grande mérito embelezá-lo.

O traço de Marjane, inconfundível, ganha vida, texturas e outros tons de cinza, o que o diferencia bastante do preto e branco, contrastados da HQ.

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O resultado visual é ainda mais bonito que o original, embora esse formato ainda sofra o preconceito das massas consumidoras. Caberia, assim, à adaptação cinematográfica a tarefa de popularizar a incrível história de Marjane. Ao explicar porque o filme foi feito com os tradicionais quadros desenhados à mão (desenhos animados individuais) em vez dos gráficos gerados por computador, Satrapi disse:

 

“As linhas dos gráficos gerados por computador não têm imperfeições. Isso tira personalidade às personagens, os seres humanos não são perfeitos e as linhas desenhadas à mão refletem melhor as suas almas.”

 

Já faz muito tempo que os filmes de animação deixaram de ser um programa somente para as crianças. Este filme é o produto de muitos artistas a trabalhar durante três anos, e interpretado através do olhar de Chiara Mastroianni que dá a voz à personagem de Marjane, a filha única de um casal culto; Catherine Deneuve com o papel de Sra. Satrapi; a neta adorada pela avó por Danielle Darieux e Simon Abkarian, cujas vozes deram ainda mais vida as personagens e a todos os que nos bastidores estiveram ocupados a desenhar, inserir a música, editar, etc.

Com traços simples, mas de composição complexa, passando longe de animações digitais e apelando para um lado “tradicionalista” da arte, “Persépolis” é o fruto daqueles que encorajaram Satrapi a publicar as suas novelas gráficas, muito populares entre os fãs da banda desenhada, e os seus colaboradores na realização do filme.

A força da arte de Satrapi conquistou o apoio de pessoas influentes, incluindo duas atrizes francesas conhecidas internacionalmente, e isso por sua vez ajudou o filme a entrar nos canais convencionais. No entanto, o trabalho desses artistas foi guiado pela ideologia artística e não pelo dinheiro ou fama.

Numa entrevista disponível na página da internet do “Persépolis”, Satrapi diz sobre sua parceria com Paronnaud:

“Sob muitas formas nós somos muito diferentes e até mesmo opostos, mas completamo-nos um ao outro ao fazermos este filme e mostramos que todas as baboseiras sobre Oriente e Ocidente e o choque cultural com que somos bombardeados não passam de um disparate.”

O filme é uma preciosa obra de arte. A sua forma minimalista parece ser a melhor maneira de contar uma história tão cheia de acontecimentos e importantes questões. A brevidade das palavras, a simplicidade dos desenhos e a economia de cores narram uma história compacta cheia de humor e reflexões. O que num outro contexto poderia ser considerado fraqueza artística, como a simplicidade ou por vezes mesmo a rudeza das linhas, a falta de cor e a clara franqueza do texto, são tudo virtudes de “Persépolis.”

Com uma linguagem rápida, diálogos divertidos e belas imagens, “Persépolis” é um filme de animação com objetivo de expor a intolerância religiosa e as violações de direitos humanos contra a comunidade religiosa no Irã.

Com temas pesados, dosados pelo humor conferido pela adorável protagonista, este é um exemplar (cada vez mais comum) de animação destinada ao público adulto.

Durante a infância, Marjane Satrapi viu de perto as agruras sofridas por seus familiares nas mãos da monarquia Xá do Irã. Mais tarde, sentiu na pele a ascensão da cruel e sanguinária Revolução Islâmica, período em que foi obrigada a deixar país para garantir sua sobrevivência. Com uma biografia trágica como essa, a escritora poderia muito bem ter criado uma obra triste e amargurada quando resolveu contar a história de sua vida. Em vez disso, publicou “Persépolis”, uma cativante e até bem-humorada e autobiografia contada a partir de histórias em quadrinhos, onde a família e os amigos são expostos em primeiro plano e a tragédia é usada apenas como pano de fundo, realizando um filme verdadeiramente único dentro de sua própria proposta.

Persépolis”, portanto, é uma obra cativante, mas, obviamente, não é para todos. O governo iraniano, claro, acusou o filme de “fazer um retrato irreal das conquistas e resultados da gloriosa Revolução Islâmica”.

II – ENTREVISTA COM MARJANE SATRAPI:

O filme tem obtido diversas indicações e prêmios. Isso foi uma surpresa?

MARJANE SATRAPI: Foi sim. Três anos atrás eu conversei com meu melhor amigo [Vincent Paronnaud] e perguntei se ele queria fazer o filme comigo. Montamos o estúdio em Paris e reunimos todos os nossos amigos para fazê-lo. Foi um trabalho de amizade essa animação preto e branco – e aí subitamente ela ficou pronta e recebemos uma indicação para Cannes [o filme empatou com Stellet Licht na categoria Prêmio do Júri]. Sabe? Um filme feito com o que tínhamos à mão… foi incrível. Estou muito honrada e feliz e não esperava toda essa atenção.

CHIARA MASTROIANNI: Eu falei pra Marjane que ela devia começar a montar um clipping ou coisa assim. A lista está ficando grande! É uma enorme surpresa, sem dúvida. Quando começamos era algo pequeno e entre um pequeno grupo de pessoas – e agora ele está solto por aí, circulando o mundo e as pessoas estão adorando e dando prêmios a ele… é a cereja no bolo!

Chiara, quando você entrou no projeto já sabia que ele seria tão especial?

CHIARA: No momento que encontrei Marjane soube imediatamente que o filme seria especial. Eu conhecia o livro, que eu gosto muito e considero muito especial – mas a verdade é que fui eu que corri atrás dela quando soube que a história em quadrinhos se transformaria em filme, de tanto que gosto dela. Eu nunca faço isso… sou tímida demais, mas dessa vez eu tinha que fazer parte do projeto. Nos encontramos, tomamos uns drinks, gostamos uma da outra e ela me contratou. Eu acreditei nesse projeto desde o início, mas não tinha a menor ideia de que ele seria tão celebrado.

E como foi o processo de dublagem?

CHIARA: No início foi um pouco estranho, foi numa sala não muito diferente desta… eu não tinha referência alguma da animação… e só depois percebi como isso foi bom. Sem a animação eu não tinha que me preocupar com sincronia labial e podia ser totalmente livre para atuar como quisesse. Foi liberador nesse sentido. Coube aos animadores trabalharem com a nossa atuação e não o contrário.

Marjane, como foi sua colaboração com Vincent?

MARJANE: Antes de trabalharmos juntos em Persépolis, Vincent e eu já éramos amigos de longa data. Trabalhamos juntos no mesmo estúdio durante muito tempo. Não dá pra dizer “ele fez isso, eu fiz aquilo”. Foi uma colaboração com muito diálogo – construímos tudo camada a camada juntos e colocamos no forno ao final juntos. Vendo o resultado depois de tantas discussões é impossível dizer o que ali é dele e o que é meu. Fizemos tudo lado a lado – algo que acho que só foi possível porque somos grandes amigos.

Chiara, como foi trabalhar com os dois?

CHIARA: Foi muito interessante, pois Marjane, além de dirigir, atuou comigo – ela fez todas as vozes dos personagens que estavam em cena comigo durante as gravações. E Vincent estava nos bastidores, checando tudo. A dinâmica entre os dois era ótima, os dois têm o mesmo alto nível de exigência, o que eu adoro. Eles fazem um ótimo dueto.

Marjane, no seu filme você mostra o mercado negro iraniano de fitas e produções proibidas pelo governo. Você já parou pra pensar que seu filme provavelmente vai parar lá também? Acha isso estranho?

MARJANE: Nem um pouco. Eu era tão acostumada com esse mercado negro que não o vejo como algo estranho ou peculiar. Aquele era um período da minha vida – as coisas que eu queria só existiam naquele mercado negro. Acho ótimo que agora farei parte dele.

Como foi a seleção de elenco? Você tem algumas pessoas bem famosas dublando o filme…

MARJANE: Além de famosos, esses atores e atrizes são excelentes. Se não fosse assim eu teria procurado a Paris Hilton. Com certeza daria uma falação maior. Mas, claro, optamos por grandes atores. Quando você faz um filme como esse quer o melhor pra ele e essa seleção, pra mim, reflete isso, com os melhores. Fizemos uma seleção dos sonhos prévia e mandamos pra essas pessoas o roteiro – e todos disseram “sim”. Foi incrível.

Com o sucesso do filme, imagino que você esteja sendo procurada por estúdios para outros projetos…

MARJANE: Nada. Ninguém nos ofereceu coisa alguma. Mas Vincent e eu queremos fazer outro filme juntos. Primeiro vamos nos concentrar no que temos em mente e depois, se alguém nos procurar, estamos abertos a novas ideias, claro.

 

III – TÍTULO:

 

O nome Persépolis é uma criação dos gregos, que a chamaram de “Cidade dos Persas”, originário do grego parseh + polis. O nome original, aparentemente, era apenas Parseh, mas atualmente o local é mais conhecido como Takht-e Jamshid, que significa “Trono de Jamshid”.

Jamshid foi um dos míticos reis da Pérsia, mas é a Dário I que se deve o início da construção da fabulosa cidade de Persépolis, cujos tesouros já estiveram protegidos por muralhas que atingiam os dezoito metros de altura. O lugar foi escolhido por sua majestosidade natural para ser palco de cerimônias e festejos imperiais, como o Nawruz, o Ano Novo Zoroastra, e exibir as grandezas do império, que chegou a abranger um território que ia até ao Egito, à Grécia e à Índia, atingindo o apogeu depois da fundação da cidade, em 518 a.C. Toda a corte atravessava o deserto entre a capital, Susa, a cerca quinhentos quilômetros, e repetia a viagem no sentido inverso mal acabavam as festas.

Os reis Xerxes e Artaxerxes continuaram a sua construção; palácios e outros monumentos foram-lhe sendo acrescentados durante um período de cento e cinquenta anos, tudo em calcário cinzento e mármore, com recurso a colunas de madeira de cedro e outras árvores gigantescas trazidas da Índia e do Líbano das quais, evidentemente, já nada resta.

A cidade chegou ao fim quando Alexandre, o Grande, da Macedônia, enviou grande parte de seu exército para Persépolis em 330 a.C.. Alexandre realizando uma aproximação rápida logo invadiu os portões persas e capturou as riquezas do império antes que eles fossem retirados do local. Ele deixou sua tropa a vontade para saquear Persépolis por diversos dias. Logo depois a cidade foi toda queimada, mas não se sabe se o fogo foi um descuido ou uma vingança pelo fato dos persas terem queimado a Acrópoles de Atenas.

O magnífico Portal de Xerxes, ladeado por figuras com corpo de leão e cabeça “persa”; as colunas do palácio de Apadana, com cerca de vinte metros de altura; a estatuária e os relevos impressionam, desdobrando-se em figuras de uma perfeição impressionante: animais e pessoas com roupas e toucados elegantes que permitem identificar a sua origem; águias de cabeça dupla, estátuas de mãos dadas, cabelos e barbas enrolados em minuciosos caracóis, touros assírios devorados por leões persas, filas de homens que sobem as escadas dos palácios com ofertas para o rei, recontam em silêncio as extraordinárias histórias da época.

Na colina rochosa sobranceira ao complexo e em Naghsh-é Rostam foram escavados sete túmulos, anunciados no exterior por guerreiros e cavalos gigantescos recortados na pedra com uma maestria digna de féretros reais onde se encontram sepultados os maiores imperadores persas, de Dário I a Xerxes e Artaxerxes.

As escavações começaram em 1930, mas o primeiro visitante ocidental foi o frade Agostinho e diplomata Antonio de Gouveia, admirando já tanta grandeza:

“As paredes dellas estavam todas cubertas de muytas figuras de relevo, mas tambem esculpidas que duvido eu se pudessem lavrar melhor em materia mais branda, por estas escadas se entrava num pateo grande onde estavam as quarenta colunas, que dam nome ao sitio (…) os portaes por onde se entrava a este pateo eram muy altos e as paredes muy largas de hua parte, e outra dellas sahiam Leões & outros animais ferozes, relluados na mesma pedra, tambem lavrados q pareciam q ainda queriam meter medo (…)”.

Sobre a escrita cuneiforme que cobre algumas paredes não escapou à sua observação, tendo mesmo lamentado que, como ninguém a conseguia ler:

“tudo ajuda a fazer esquecer o q o ambicioso rey desejou tanto eternizar”.

Hoje, Persépolis é Patrimônio Mundial da Humanidade e, mesmo com os seus segredos desvendados, ainda é um lugar que faz sonhar.

(continua)

Valéria Pisauro é Professora de Literatura e História da Arte