“Os pães – filhos legítimos dos trigos –
Nutrem a geração do Ódio e da Guerra.
Os cachorros anônimos da terra
São talvez os meus únicos amigos!”
(Augusto dos Anjos, “Gemidos de Arte”)
Morde, rasga, dilacera. Até o final, até que não haja mais rótulo ou tampa. Não há tratamento mais indicado para a reciclagem que os dentes de Milla.
Aproximadamente 3 anos, magra, olhos cansados, focinho escangalhado… Foi nessas condições que nós, eu e Mary, a encontramos no centro de Controle de Zoonoses de Piracicaba. Não parecia, mesmo, aquela imagem que fazemos de pitbull: Milla tem as orelhas caídas e cara de manhosa.
Cidadãos de Telópoli, recomendo o cultivo de pitbulls entre vós! Animal forte, resistente, companheiro, dócil e antropologicamente útil. Foi pelos olhos de Milla que aprendi a olhar melhor o ser humano, a compreender a ancestralidade afetiva que perpassa tanto a nós, quanto aos animais. Aliás, esta frase já aponta para a fragilidade humana: “tanto a nós, quanto aos animais”… Vejam, há uma oposição que dorme, viva, nesta afirmação: segundo ela, somos opostos aos animais (e nada pode ser tão falso). Adotar a Milla me ajudou a começar a compreender que a diferença entre nós e os animais não implica em superioridade ou oposição, mas em troca. O convívio com o animal nos humaniza porque nos mostra como somos alienados de nossa animalidade primordial, fazendo com que nossa arrogante razão fique a mercê de nossas mais obtusas fantasias afetivas.
Duvida? Frequente uma clínica veterinária. O que as pessoas estamos levando para o tratamento de saúde é nossa ancestralidade: o animal que vive em nós, projetado no animal real que pensamos ter. Não foram os dentes, a musculatura forte que trouxeram os animais de estimação, ao longo da história, para superar a extinção… Foram seus olhos meigos, sua capacidade de mimetizar o humano, reconhecendo traços de expressão, intensões, ansiedades. Humanizamos os animais e eles nos apontam o animal em nós. Isso não é autoritário com os bichinhos, é troca, mutualismo, simbiose… Mas nos torna autoritários quando não damos conta do animal que somos. Dos afetos que mobilizamos e projetamos nessa relação.
Não. Cachorro não come o que gente come. O pão com manteiga é problema seu, porque você pode conviver ou escolher a sua obesidade, mas seu cão, NÃO. Os animais não podem ter direitos (calma!): direito pressupõe autonomia jurídica, racional; direito pressupõe razão (se discordam, briguem com o dono da boca, o Sr. Jean Jacques Rousseau!). Os animais não têm direitos, mas nós, sim, já que somos dotados de razão e, assim, temos o dever de respeitá-los. Logo: ninguém deve amar os animais, você ama quem você quiser, isso é de foro íntimo, azar o seu. Mas os cidadãos de Telópoli devem respeitar os animais, já que o ser humano é inteligente e é o único ser capaz de zelar pela vida em suas múltiplas manifestações.
Assim, cuidar bem de um cachorro é cuidar das necessidades de um cachorro. Passear é uma (há uma avalanche de cães obesos nas clínicas), higiene é outra, alimentação correta também, responsabilizar-se pelas atitudes do animal também! Se concordamos que o animal não possui autonomia jurídica sobre si mesmo (ele é gramatical e juridicamente inimputável), isso implica em afirmarmos: não é a raça, é como se cria (há uma campanha nos Estados Unidos, por exemplo, contra o extermínio de algumas raças: “punish the deed, not the breed”).
Mas recomendei aos cidadãos de Telópoli o pitbull e destaquei, dentre outros motivos, sua “utilidade antropológica”. No início, eu mesmo me estranhava: ficava preocupado, afinal seria um cão assassino que de repente iria mostrar o seu lado Mr. Hyde e banhar-se de sangue… E vi que não era assim.
Em seguida vi que as reações dos humanos (e de seus agregados) frente aos animais de grande porte eram as mais interessantes possíveis. Essas experiências se passaram (e ainda acontecem vez ou outra) desde quando comecei meus passeios com a Gorda (apelido da Milla), pelo centro da cidade, quando ela já era uma cachorra adestrada, apta a comportar-se bem, mesmo diante dos animais mais virulentos da rua. Foi aí que comecei meu estudo antropológico que aqui compartilho, no qual descrevo as mais curiosas tribos das ruas telopianas. Eis algumas categorias: os Assustados pudicos, os Frouxo-canino-marxistas radicais, os Porra-louquistas desbundantes, os Fofurinhas assassinolentos e, finalmente os Donus deseducantis.
Entremos nessas categorias antropológicas:
- Assustados pudicos: são as pessoas que tem um medo quase que paranoide de animais. Tremem até diante de um yorkshire. Diante de um cachorro de grande porte, passam de olhar fixo no horizonte, rezando internamente e então se diagnostica um tremelicar de lábios, algo como um mantra suave, uma reza silenciosa. Não sabem, mas o comportamento religioso não é o que garante a segurança, mas sim, o fato de não encararem o cachorro. Territoriais, os cachorros (e todos são Canis familiaris!) não tendem a agressividade com humanos quando estão passeando, tranquilamente, ao lado de seus donos. A agressividade costuma aparecer quando se sentem acuados ou desafiados (ou em proteção de alimento, de objetos de posse ou de território). Entretanto, acertam no alvo, ainda que de olhos fechados: na dúvida, atravesse a rua, ou apenas observe como o animal se comporta diante de outros transeuntes e não se relacione com o animal… Você não é sua presa, nem seu desafeto. Se você não o conhece e não quer conhecer, passe tranquilo, sem movimentos bruscos ou ataques carnavalescos. Para cachorros, desprezo não é inimizade.
- Frouxo-canino-marxistas radicais Esses são, talvez, o tipo mais perverso de categoria animal, porque eles se disfarçam de amigos dos animais. Eles acham cachorro, um animal lindo, mas só quando refletem sua fragilidade. Eles gostam de cachorrinhos pequenininhos que são incapazes se parecer com um animal em sua potência mais primitiva: seus cachorrinhos não latem, não cheiram, não estranham… mas mordem todos que se aproximam dele e de seu dono. Eles povoam muitas das instituições pró-cães e juram que quando a humanidade comer só alface, o mundo dos bichinhos estará livre para amar desenfreadamente. Acham que todo bicho nasce bom e cheio de amor, indício de que nunca leram Rousseau e ainda projetaram o mito do bom selvagem para todos os filhotinhos de plantão. Só podem ter cachorrinhos minúsculos por que são dominados por eles… Já imaginou um Frouxo C-M Radical com um “pit”? Não saberia dizer não, incapaz de mostrar liderança, querem um Chihuahua para Presidente do Brasil. Assim, eles acreditam que existe uma “luta de classes canina” entre animais de pequeno porte (que seriam naturalmente meigos, dóceis, bondosos por natureza e totalmente tchukuchukurhuquiquiqui) e os terríveis cachorros de grande porte que são predadores intergalácticos vorazes e dissimulados, capazes de comer um Arnold Schwarzenegger todo café da manhã.
Uma noite, passeávamos (dono de cachorro grande passeia de noite, com medo de ser atacado pelos FCM-Radicais!) eu e a Gorda quando fomos atacados por uma velha (porque senhora idosa é um tipo de ser humano muito diferente disso) que se prostrou diante da cachorra e, com o dedo em riste, começou a atacar a Millosa, cuspindo palavrões entre suas presas, fuzilando ódio e dizendo que ela era de uma raça assassina. Depois de 5 minutos em êxtase selvagem serial-killer ela se percebeu (eu e Gorda ficamos embasbacados, bobos diante do circo) e perguntou: “Ela morde?”. Eu respondi: “Não. Ao contrário da senhora, ela é adestrada”.
- Porra-louquistas desbundantes: Esses apresentam um parentesco com a categoria anterior, no que diz respeito ao amor pelos animais (desde que esses animais representem sua bundamolice existencial), no entanto, eles não possuem animais de estimação e acham super “do bem” os bichinhos (em que biblioteca essa gente anda lendo Rousseau errado, hein?) e acha que todo bicho é fukuxuxikuxichuku e portanto devem ser amados, apertados, lambidos… Eles realmente acreditam que um cachorro é um bichinho de pelúcia e são a reencarnação da Felícia do Tiny-toon. E esses são também perigosos, porque eles te vêm na rua, se ajoelham na cara do cachorro, sorriem histericamente (entenda, para um cachorro, isso muitas vezes é sinal ameaça já que o grandão se aproxima ameaçador e mostra os dentes) e são os grandes candidatos à levar mordida. Quando você tem um micro-cão isso pode até não ser um problema, mas quando você tem um cão de grande porte, isso pode significar um estrago político: o P-L Desbundante é o FCM-Radical em forma larvar!!!! Sim, é igual um “gremlin” quando alimentado depois da meia noite que caiu na piscina… Ela se torna um mostro perverso, compra um shi-tzu, se transforma em um mol de monstrinhos e sai aterrorizando os donos de cachorros assassinos, perversos, malditos, sanguessugas, rotweillers, dobermanns, pitbulls, etc, etc e etc.
- Fofurinhas assassinolentos: Esses são animais não humanos de uma categoria desumana, porque são os bichinhos tchukufuchiyyytchuku-ku dos P-L Desbundantes (e que podem ter se desenvolvidos em FCM-Radicais). Entenda que não são animais geneticamente modificados! São cães bons, companheiros… Ou melhor: eles querem ser, mas seus donos não deixam! Seus donos, no máximo, vêm alguns episódios de séries do Animal Planet e acham que sabem lidar com seus animais. Acham que são iguais aos seus pimpolhos e isso faz com que os bichinhos fiquem sendo seus donos. Esses dão trabalho! Enchem a paciência de todos, dentro e fora de seus territórios, só tomam água mineral, comem pão com requeijão da mamãe e tem que entrar na dieta (aí eles ganham risoto de queijo cottage). São donos do mundo, donos dos donos e coitado de você se entrar no seu caminho: latem, mordem, rosnam, pulam, defecam e urinam em você… Assim que a mamãe e o papai deles vê a cena, corre para dar uma bronquinha: “Péricles, meu pichushukuku, mamãe não goxta que vuxê faxa axim…” – E os põe no colo, e fazem cafuné, e os cãezinhos F. assassinolentos pensam: “Vejam! Tolos mortais! Eu faço o que quero! Sou um deus nos ombros dos gigantes… Fujam ou se ajoelhem, vassalos!”
Certa vez, eu e Gorda fomos acuados em plena praça pública: eram dois tumba-latas, um poodle e um pinscher que nos cercaram e latiam para nós. Dos cães, dois deles não tinham donos definidos: o poodle tinha uma dona (porque eles é que tem os donos) que falava ao celular e nem ligava para a cena. Se eu soltasse, a Gorda picava eles… Mas virava manchete, página policial… Era um plano sereto dos FCM-Radicais (e, como veremos, em parceria com os Donus deseducantis) para manipular a mídia e nos derrubar politicamente. Eu e Gorda saímos à francesa, ilesos.
- Donus deseducantis: Meus estudos antropológicos pouco puderam concluir sobre os D-D. São donos saudáveis de animais, mas possuem um comportamento humano em demasia, ou seja, não respeitam limites, territórios, regras. São ótimos para seus cães, mas péssimos para os demais animais. Acham que não é preciso recolher o cocô dos seus bichos da rua e acham que educação canina é para cães como o das séries Rin-Tin-Tin, ou Boomer, ou Lessie, etc. Mas na verdade, meus mais recentes estudos afirmam que se trata de mera arrogância, mesmo. Eles saem às ruas da Telópoli como o Will Smith, no filme “Eu sou a Lenda” (cortejados pelos seus cães, geralmente de médio ou de grande porte): eles creem piamente que seus animais são adestrados, muito adestrados, meudeusnossasenhora como são adestrados… Por isso não precisam nem de enforcadeira e nem de guia. Eles não andam com seus cães soltos nas ruas, passeiam frugais como cavalo de milico em XV de novembro. Os D-D são batmans e seus cães, robins. É um favor, uma glória para a urbe tê-los pavoneantes pelas noites da cidade, pairando infalíveis como Valkírias wagnerianas.
Cão de dono educado, usa enforcadeira, usa guia. Não se trata de desconfiança do animal, mas sim de que a interação entre o condutor e o conduzido é sólida (ou o dono tem dúvida de quem conduz?). A guia e a enforcadeira protegem o cachorro de situações perigosas, desconfortantes que só o dono (que é ser humano racional, cidadão portador de direitos e deveres) é capaz de discernir.
Outra vez, andávamos tranquilos, quando um mediano shar-pei veio correndo cheirar a Gorda. Problemas? Sim: primeiro porque veio correndo, segundo porque se aproximou pela cara da Milla, terceiro porque o shar-pei é um cão de pastoreio que poderia exigir dominância em seu território (supunha eu que sempre andasse por ali). Seria luta certa. Pit não aceita confrontamento de dominância, geralmente. A Milla foi de rua, não gosta de ser incomodada por outros animais (é o limite dela… Veja, posso controlar seu comportamento, mas não neutralizar seus instintos). Dei comandos, ordenei que se acalmasse… Eu não podia ir para cima do cachorro com fúria: tinha que me manter calmo.
Coloquei meu pé, na cara do cachorro, ordenando que se afastasse e fui tirando , de lado, a Gorda. O dono veio furioso! Queria brigar comigo porque havia enxotado e chutado o cachorro dele… Disse que bateria em mim! Que nem ele batia em seu cachorro, que o cachorro era bonzinho…
Cachorros não nascem bons ou maus. Podem, dependendo da “sinolidade” (termo correto para “personalidade” canina) apresentar um comportamento desejável ou indesejável… Mas não há maldade… Nem tampouco bondade. Acho que ele ficou com medo da Gorda e não veio me atacar. Espero que esteja lendo esse texto. Eu salvei a vida do cachorro dele. Ele, como muitos outros donos mal educados, não sabe impor limites ao seu animal, por que acreditam em uma suposta capacidade moral inata aos seus bichos.
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Eu e a Gorda passamos por todas essas aventuras antropológicas que revelaram não uma tese sobre o humano, mas um lugar de observação bastante interessante para se compreender as pessoas e suas idiossincrasias. Não apresento tais pontos como quem deles se isenta, mas como quem, mesmo dentro deles, consegue observá-los.
E este não é um texto sobre cães. É um crônica bem humorada que quer apenas mostrar aos animais humanos que os animais não humanos nos denunciam. Eles, da forma mais amoral possível, nos apontam os limites do humano e, como pegadas num espelho, desenham os (des)caminhos de nossas projeções afetivas.
Quando você vir um pit com seu dono pelas ruas, pode ser eu e a Milla (gordo e Gorda), passeando calmamente. Não se horrorize, não se sinta obrigado a gostar. Um pitbull é um cachorro, como um basset, como um pastor alemão, como um schnauzer (aliás, um pit, um schnauzer e um yorkshire são todos terriers, ou seja, são parentes!).
Mas os “tipos antropológicos” aqui descritos são, graças aos deuses, exceção… Em 98% dos nossos passeios venho encontrando pessoas cada vez menos assustadas e mais informadas sobre educação canina e sobre respeito aos animais em geral. Se o humano é o animal que produz conhecimento, a melhor forma dele se relacionar com a natureza é por meio do conhecimento. Há muito tempo, antes ainda da escrita, o homem convive com animais. É preciso não se furtar de conhecê-los.
O que fazer com os imbecis que criam animais para se tornarem agressivos? Processo, julgamento, cadeia. Não façam de uma mentira uma certeza. Desconfiem dos donos… Puna os responsáveis e não a raça!
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A Gorda passou por uma cirurgia de câncer na mama e passa muito bem. Nossas caminhadas e corridas estão voltando, isso graças à competência e ao lúcido trabalho de toda a equipe (viu, Dona Cida e Dona Élide?) da Clínica Veterinária Vida Animal. Aos veterinários Dr. Plínio De Sordi Paschoal e Dra. Marina Cambraia Cleto, meu muito obrigado, de coração.
Fábio Casemiro
Alguns sites sobre pitbulls e sobre Política controle de raças nos Estados Unidos, além do site da Cão do Mato, sobre adestramento e educação caninos.
http://en.wikipedia.org/wiki/Breed-specific_legislation
http://www.understand-a-bull.com/BSL/BSLindex.htm
http://pt.wikipedia.org/wiki/Pitbull
Sabrina Rodrigues Bologna
11 de março de 2013
H, querido. Simplesmente fantástico seu texto. Chorei de rir.
blogdoamstalden
11 de março de 2013
Genial, H! Adorei.
fabiocasemiro
11 de março de 2013
Obrigado Bina!, Obrigado Luís.
Acho que a gente espera muito dos bichos, onera eles com nossas misérias. É preciso rir no espelho antes que venhamos a enlouquecer os animais tb!
Abraços!
H
Brunão
11 de março de 2013
H, curti demais seu texto!!!!! Escreva sempre no blog do Luis!!!! abraço
blogdoamstalden
12 de março de 2013
Brunão. O H tem coluna fixa agora. Toda segunda segunda feira do mês. Duplo dois. Abraço.
marina
14 de março de 2013
Amei esse texto… a mais pura vdd!!!eles são o NOSSO espelho, na vdd o espelho do dono… que é o responsavel pelo jeito deste qdo adulto….