Entra ano, sai ano, e “a cada fevereiro e feriado” testemunhamos a matança, a guerra civil, que se instalou no trânsito do nosso País.
São cerca de 600 mil acidentes, com quase 50 mil mortes ao ano, ou seja, um descalabro de perdas de vidas e bilhões de reais em prejuízo aos cofres públicos e à própria economia brasileira. São números assustadores, mas as estatísticas são frias, assépticas, quando o que se vê na realidade são tragédias acumulando-se nos hospitais, nos postos da Polícia Rodoviária, nos IMLs, nos necrotérios.
As reportagens de tevê sempre trazem entrevistas com autoridades de trânsito, que via de regra recomendam prudência aos motoristas, que dirijam descansados, que façam manutenção em seus veículos, que respeitem a legislação. Algumas vezes, após grandes tragédias, entrevistam-se eventuais sobreviventes, ou então familiares das vítimas, que preenchem com seus lamentos e lágrimas o vazio deixado por aquelas pessoas brutalmente mortas após “acidentes” – que, em grande parte dos casos, poderiam ser evitados.
Assim nos dizem as frias estatísticas: das cerca de 50 mil mortes por ano, ao redor de 70% delas são causadas por uma famosa tríade: negligência, imprudência, imperícia. O que isso quer dizer? Quer dizer o seguinte: procedimentos padrão, isto é, a forma com que os veículos são conduzidos pelos motoristas, foram desrespeitados. As leis de trânsito foram infringidas. Os veículos não estavam em condições de trafegar, ou a via de tráfego não estava adequadamente sinalizada e/ou conservada. Entre outras causas, que se repetem em boa parte dos acidentes registrados.
Mas a pior forma de imprudência, a mais egoísta, a mais revoltante, a mais dolorosa para todos nós, é sem dúvida a que envolve embriaguez ao volante. Sabe-se que cerca de 30% dos acidentes de trânsito com mortes envolvem algum tipo de uso de drogas e sabe-se também que, por mais que a legislação fique cada vez mais rígida, e por mais que se intensifiquem as blitze de trânsito destinadas a coibir a embriaguez, os casos de motoristas bêbados que saem por aí matando – aos outros e a si mesmos – seguem aumentando, ano a ano.
As causas para esse comportamento irresponsável são inúmeras. Vão desde a propaganda de bebidas alcoólicas, que muitas vezes patrocinam eventos esportivos e outras modalidades de entretenimento, personalidades públicas e até mesmo são associadas a um “estilo” de vida saudável, esfuziante, alegre, sociável, repleto de amigos e “beldades”; até a livre oferta de bebidas alcoólicas, inclusive em locais improváveis, como postos de gasolina à beira de estradas. (Outro dia vi uma geladeira automática com cerveja dentro de um pronto-socorro). Contribui para isso também o aumento do poder aquisitivo do brasileiro: hoje qualquer dia da semana é dia para um happy hour ou balada; qualquer joguinho de futebol na tevê é motivo para reunir os amigos em um bar, boteco ou restaurante; e iniciativas como o uso de táxi ou transporte público e a carona solidária (o “motorista da rodada”, como uma marca de cervejas convenientemente alardeia), são vistas como motivo de piada ou deboche. Em reportagens feitas em bares e botecos, vê-se declarações como as seguintes:
“Eu bêbado dirijo melhor do que a minha namorada, sóbria”
“Moro a apenas 4 quadras daqui, não tem perigo de acontecer nada enquanto eu dirijo daqui até lá”
“Vim de carro e volto de carro porque sei onde está a blitz da lei seca e consigo desviar”
“Apenas uma caipirinha (ou tequila, ou latinha, ou dose de uísque) não me deixa bêbado”
“Eu voltaria de táxi, mas táxi de noite é bandeira 2 e é muito caro”
“Eu usaria o transporte público, mas depois de meia noite não tem mais ônibus nem metrô”
E assim por diante.
O que se vê, na prática, são acidentes horrorosos, motivados por embriaguez, ceifando de maneira injustificável e revoltante, vidas inocentes, que não tinham nada a ver com esses motoristas irresponsáveis, que se acharam no direito de encher a cara e depois sair por aí dirigindo seus carros normalmente, numa verdadeira roleta russa.
Aquele motorista que capotou na Marginal Pinheiros morreu e deixou sua acompanhante ferida – e ela declarou que “ele tinha bebido uma garrafa de vinho”. Aquele motorista que se chocou violentamente contra outro carro, ocupado por uma universitária, em plena Vila Olímpia, tinha bebido “duas doses de uísque” num bar, segundo amigos que estavam com ele. Aquele motorista que atropelou mãe e filha na calçada, matando ambas, recusou-se a fazer o teste do bafômetro, mas estava “visivelmente embriagado e desorientado”, de acordo com os policiais que atenderam a ocorrência. Aquela mulher num Audi que disputava racha e atropelou e matou um estudante de jiu-jitsu também recusou-se a fazer o teste do bafômetro – mas havia latas e garrafas vazias dentro do carro (a audácia da motorista foi tamanha que contestou em juízo as provas testemunhais dadas por policiais militares, que testemunharam o racha e o acidente de um posto de gasolina a apenas 50 metros de distância). Aquele caminhoneiro que bateu de frente contra um carro, matando 5 pessoas da mesma família, declarou que “tinha bebido apenas uma pinguinha com mel”.
E assim por diante.
A convivência em sociedade somente é possível porque existem leis e regras para disciplinar nossos eventos, tarefas, comportamentos, condutas e atitudes, diuturnamente. Existe o direito e dever individuais. E existem direitos e deveres coletivos. Entretanto, o direito individual nunca pode se sobrepor ao direito coletivo. Trocando em miúdos: o meu direito de ir e vir em segurança não pode ser vilipendiado por um motorista bêbado que resolve cruzar o meu caminho. Donde se conclui: um motorista bêbado, que incorre em conduta tão irresponsável, doentia e egoísta, não pode ter da Lei e da Justiça os mesmos olhos que os demais de nós, cidadãos pagadores de impostos, e rigorosos cumpridores da lei.
Criou-se a campanha “Não Foi Acidente”, uma iniciativa de um cidadão que perdeu mãe e irmã em um “acidente” causado por um motorista bêbado, uma iniciativa para juntar 1,5 milhão de assinaturas tendo em vista mudar a legislação atual em caso de crimes de trânsito ocasionados por embriaguez. Infelizmente a campanha não tem o engajamento e o apoio da grande mídia, que ignora solenemente a iniciativa que já mobiliza mais de 600 mil assinaturas na internet. É natural, sabendo-se que as fabricantes de bebidas alcoólicas patrocinam alguns dos maiores patrocinadores de tevês, jornais, revistas e programas de padrões de qualidade, moral e ética questionáveis, como o “fundo do poço” da TV brasileira, essa aberração chamada “Big Brother Brasil”. O único programa que dá visibilidade a essa campanha é o Custe o que Custar, da Bandeirantes, e mesmo assim de maneira rápida e esporádica.
Nesse entendimento, o Ministro do STF Dias Tóffoli, que está responsável pela revisão do obsoleto Código Penal, já declarou que, independentemente do número de assinaturas atingidas pela campanha, a “Não Foi Acidente” é um clamor popular. E ele, como revisor do Código Penal, entende que deve ouvir e dar vazão a esse clamor. Sendo assim ele já se comprometeu a criar, nos casos de embriaguez ao volante e participação de rachas (“pegas”), uma nova tipificação de crimes, intitulada “culpa gravíssima”. É a temeridade, é o comportamento irresponsável e desaconselhável, francamente reprovável e potencialmente destruidor, de um motorista, que pode causar acidentes horríveis, com mortos e feridos, com sua conduta perfeitamente reprimível e evitável, no caso, dirigir sob efeito de bebida alcoólica ou disputar pegas na rua.
Em casos como esses, os motoristas serão imediatamente denunciados por conduta de “culpa gravíssima”, o que na prática irá acabar com a principal brecha na lei que hoje protege esses criminosos: um boletim de ocorrência mal redigido, ou uma denúncia acolhida de maneira incorreta pelo delegado, ou uma perícia mal feita durante as investigações, tudo isso pode levar à tipificação de crime culposo, ou seja, “quando não há intenção de matar”, o que é um verdadeiro tapa na cara dos familiares e amigos das vítimas. O próprio mote “Não Foi Acidente” já descreve seu objetivo de forma bem explícita: se um bêbado ou disputador de racha mata ou fere pessoas na rua, obviamente isso não é um “acidente”. Uma pessoa que bebe e dirige, ou que disputa rachas na rua, tem plena consciência de que pode, sim, ferir ou matar outras pessoas (ou a si mesmo). E, em boa parte dos casos, essa consciência não o desencoraja nem o demove dessa intenção. Ele pratica o delito mesmo assim.
Para acabar com a polêmica da tipificação desses crimes (culposo, doloso ou culposo com dolo eventual) é que se criará a nova jurisdição, a “culpa gravíssima”. Não, o motorista não tinha a “intenção” de vitimar ninguém, mas assumiu, com sua conduta, a “probabilidade”, a “temeridade”, de vitimar.alguém. Nesse entendimento, em caso de vítimas fatais, o motorista será automaticamente julgado e condenado a 8 anos de prisão em regime fechado, por vítima fatal; em caso de feridos, 4 anos de prisão para cada pessoa ferida, dependendo-se da gravidade dos ferimentos (lesões ou sequelas permanentes) as penas podem ser aumentadas em 1/5 a 2/3, conforme o entendimento do juiz. O processo de investigação, pronúncia e júri deverá ser bem mais rápido, levando o motorista culpado à prisão em no máximo 1 ano a 1 ano e meio. Isso tende a dar algum conforto, alguma resposta, aos familiares e amigos dessas vítimas.
A Lei Seca de 2013, em vigor desde janeiro, também é uma boa iniciativa do governo federal, junto com a PARADA (Pacto pelo Respeito à Vida e Redução de Acidentes de Trânsito) que tem veiculado campanhas mais cruas e chocantes na mídia tendo em vista a conscientização da responsabilidade de todos nós para tentar diminuir, tentar mudar, esse cenário de matança e violência no trânsito, que tem ceifado tantas vidas jovens e plenas de vigor e capacidade; por isso, de agora em diante, que todos nós possamos também colocar a mão na consciência e assumir esse compromisso, o compromisso de mudar nossa relação com os automóveis, usando-os com segurança e zelo para que nos conduzam daqui pra lá e de lá para cá de volta; sem que isso represente, no meio do caminho, um calvário cheio de sofrimento para nossos familiares e amigos, ou daqueles que cruzam nosso rumo nesse intermédio, nesse caos ordenado que é vivermos em comunidade, convivermos todos juntos a bordo de nossos veículos nas ruas, avenidas e estradas do mundo.
Que “ir e vir” seja realmente um direito de todos nós. E que o álcool possa a ser somente uma gota de alegria em nossas vidas. E não um oceano de tristeza.
NOTA: Eu gosto de cerveja e caipirinha. Uísque e vinho também. Mas não dirijo quando sei que vou beber. Sou a “motorista particular” do meu noivo; no carro, somente ele desfruta da Brahminha gelada. Eu fico no Gatorade de uva, e adoro. E tudo bem. O melhor prazer do mundo é saber que vou levar a nós ambos em segurança para casa. A leveza de saber que, independente de qualquer imprevisto que possa acontecer, pelo menos eu estarei 100% sóbria e poderei responder com presteza e precisão a qualquer intercorrência. Chegando em casa eu tomo a minha latinha, ou não. Nossa noite é ainda mais divertida e maravilhosa graças a isso. ;o)
Aline Cristina Pavia
Farmacêutica
Evandro Novello
20 de março de 2013
Muito bom levantamento sobre a “questão”, tenho minhas aversões com alguns argumentos de “demonização” do consumo de bebidas alcoolicas e tenho minhas razões para achar que o movimento da “lei seca” seja mais fachada do que uma ação publica honesta e funcional. Mas é claro que não me sinto confortável diante dos numeros dos “massacres do transito brasileiro” apontam… o que me incomoda são ações pela metade: proibido dirigir alcoolizado? a grande maioria da população tem e se utiliza de carro principalmente para seus momentos de lazer, como vai ser isso a partir de agora?
Lei pura e simplesmente nunca foi motivo para mudarmos nossos meios, e punição é reforçar ódio, nunca educar…
Aline Cristina Pavia
20 de março de 2013
Obrigada pelo comentário, Evandro, permita-me discordar em dois pontos.
Primeiro, na grande maioria dos países da Europa, EUA, Canadá, Austrália e Japão, há leis extremamente rigorosas que coíbem o motorista de dirigir sob efeito de álcool. Na Inglaterra por exemplo, se você se recusa a soprar o bafômetro, vai preso. Na Austrália, perde a licença para dirigir. Se estrangeiro, é deportado. Sou a favor da lei seca e a favor de iniciativas como carona solidária, drive sitter, táxi inteligente inclusive com redução de impostos para taxistas e valets. O cenário do trânsito hoje é de matança, por isso o Brasil deveria ser exemplar no educar e no punir, e infelizmente hoje nenhum dos dois acontece.
Segundo, apenas 23% da população brasileira têm automóveis. É necessário mudarmos nossos hábitos e darmos o exemplo para nossos filhos, e isso é necessário agora. Sugiro a você que assista o video do youtube http://www.youtube.com/watch?v=Z2mf8DtWWd8 da TAC – Transport Accident Comission de Victoria, Australia, que nos traz a real dimensão do sofrimento causado por essa combinação álcool+volante. Esse vídeo realmente muda nossa conduta, é um marco indelével. Obrigada pela leitura e contribuição ao debate. Um abraço, Aline
Aline Cristina Pavia
20 de março de 2013
Luis, hoje o Luis Nassif subiu este post sobre o assunto no blog dele. É muito interessante, vale a pena ler e refletir acerca de todos os aspectos que essa questão envolve. Muito bom.
http://www.advivo.com.br/blog/luisnassif/eu-me-neguei-a-soprar-o-bafometro
blogdoamstalden
21 de março de 2013
Evandro, temos aí um problema ético complicado. De fato educar é preferível a punir, mas o ser humano é muito narcisista. Nossa tendência a colocar o nosso prazer a frente é muito grande. Assim eu me pergunto, como proceder se todas as informações sobre bebida x direção já estão mais do que divulgadas e, mesmo assim, as pessoas não se conscientizam? Infelizmente, meu amigo, penso que não tem jeito, tem que haver algum tipo de punição. Na verdade eu chamaria de “responsabilização”, uma vez que o efeito provável, um acidente, uma mutilação, uma morte são claros e, caso você assuma o risco de provocar isso em você ou em outrem, deve ser responsabilizado. Em tempo, em 26 anos como professor, já perdi muitos alunos para acidentes de trânsito. Infelizmente boa parte deles depois de baladas onde se consumia alcool. Por último, existem outras formas de se locomover após beber, não é uma adaptação tão impossível. Abraço.
Joao Aguiar
20 de março de 2013
Tenho um monte de amigos que dirigem bêbados, eu mesmo já caí de moto tonto que nem uma vaca, morro de medo de receber notícia ruim de algum deles.
Evandro
21 de março de 2013
Ótima reflexão.
filho
25 de março de 2013
Aline, me apresente um estudo comparado, com países desenvolvidos no mundo, com números, que estudam e executam trânsito há muito mais tempo que nós. Não vale dizer que se for pego no exterior sob efeito de alcool vai preso e tudo mais, isso é lógico. A questão é saber a concentração que caracteriza isso (uma garrafa de uisque não é a mesma coisa que uma taça de vinho no exterior). No Brasil é zero, ou seja, se tomar um mísero copo de cerveja no almoço de domingo, vou preso, com algemas, independente de meu estado. Quero saber se nos EUA é assim, ou na França, ou na Itália, etc.. Feito o desafio. Se eu cheirar um carreira de cocaína e soprar o bafômetro estou livre, é isso? Vai uma introdução:
“A nova lei sobre consumo de álcool para quem dirige aproxima o Brasil de países como Jordânia, Qatar e Emirados Árabes Unidos, que não permitem nenhuma concentração de álcool no sangue dos motoristas, com punições que vão de multas à prisão. A maioria dos países da União Européia, assim como os Estados Unidos e Canadá, tem uma legislação mais flexível em relação ao tema. Algumas nações islâmicas, como Arábia Saudita e Irã, proíbem a venda de bebidas alcoólicas no país”.
blogdoamstalden
25 de março de 2013
Só para incrementar o debate, vejam isso: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/1252020-com-lei-seca-mais-rigida-acidentes-com-vitimas-diminuem-em-sp.shtml
Fabiano
5 de dezembro de 2013
Eu nunca li tanta besteira junta. julgar os atos de uma minoria e culpar a todos, bem típico do Brasil. Eu bebo, eu dirijo, nunca perdi a minha capacidade psicomotora e não respeito esta tal lei seca assim como a maioria das pessoas. Democracia é ouvir a todos, respeitar o direito constitucional e termos leis sensatas. “A defesa intransigente da lei seca é a defesa intransigente da vida” – quem criou esta frase ridícula, a direito constitucional de não produzir evidências, de não se auto incriminar é constitucional e sobrepões o Contran. Guarda não é perito tampouco juiz. O mal do Brasileiro é ser politicamente correto demais. LEI SECA EU NÃO RESPEITO, EU TWITOO