Crônicas de Telópoli. Para Que o Brasil não PEC. Por Fábio Casemiro

Posted on 9 de abril de 2013 por

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Eu e Dani Backer

O Oriente fundamentalista está vencendo. Não acho que todo o mundo Oriental seja fundamentalista, mas a parcela que é está minando o que hoje denominamos Estado democrático de direito, à duras penas conquistado. Alguns acham que o Estado democrático é um mal. Já eu, acho que num futuro próximo, ainda poderemos sentir profunda saudades dele.

A divisão Ocidente x Oriente é histórica e, do fim do Império Romano para cá, nosso Ocidente se construiu às custas da demonização do outro: ou seja, do Oriente. O diabo não é tão feio quanto se pinta, mas de tanto pintá-lo na cara do outro ele acaba saindo do retrato e, como um Dorian Gray de cimitarra e turbante, vem tomar de assalto nossas convicções.

A guerra-santa pulou para dentro dos nossos corações e o país da tolerância, que, gostosamente, se reproduzia multicores, chafurda na mais recente batalha entre os Guerreiros da fé-demais e os Cavaleiros do arco-íris. E este texto, cidadão da Telópoli, não é imparcial, não… (Que eu não comungo da utopia jornalística do documento-verdade!) Eu estou do lado dos Cavaleiros do arco-íris. Isso por um único motivo: eles leem melhor. Estranhos? Talvez. Mas cínicos descarados, não.

Os coloridos (gays, lésbicas, transexuais, bissexuais, etc, etc) se tornaram o grande alvo dos evangélicos fundamentalistas brasileiros. Nem todos os evangélicos são fundamentalistas e ignorantes e nem todo fundamentalista ignorante é evangélico, mas alguns líderes religiosos vêm vestindo a carapuça da ku-klux-klan Nazi-tupiniquim, e se tornaram, digamos, os porta-estandartes da coisa. Cito nomes: Pastor Waldomiro Santiago, R. R. Soares, Edir Macedo, Marcos Feliciano, Jair Bolsonaro e outros (veja: a ortodoxia não é privilégio de religiosos: Bolsonaro não é homem religioso é só líder nazifascista, mesmo).

Entendo que a bandeira dos coloridos deve ser tratada com carinho porque o ataque a ela é o primeiro passo daquilo que denomino os Bolsonaros do Apocalipse. Os LGBT (coloridos) são o inimigo perfeito para essa nova face no nazi-totalitarismo fundamentalista bíblico, porque se organizam como um jovem agrupamento social que, ganhando direitos e lugar na sociedade, acabam por se tornar o alvo do ódio e do ressentimento preconceituoso das pessoas mais conservadoras (eleitores arrebanháveis em potencial). Veja, telopiano, os bolsonaros do apocalipse não odeiam os homossexuais e afins, eles simplesmente odeiam, e conjugando sub-repticiamente o verbo odiar eles trazem séquitos aos seu curral eleitoral. O Brasil é mesmo o país da diversidade, mas não da liberdade: nossa mescla nunca foi construída “gostosamente” (como queria Gilberto Freyre), mas violentamente… O culto a violência cotidiana é herança colonial que nos capacita para a mistura de Casa-Grande e Senzala com fundamentalismo de Aiatolás neo-pentecostais. A saída talvez seja o que diz o muro pixado na escola Moraes Barros: “Odeie seu ódio”.

Mas porque comecei o texto falando sobre Oriente e Ocidente? Porque basta desligarmos um pouco o nosso preconceito com os orientais para percebermos que nosso grande inimigo é o nosso fundamentalismo e que, ao contrário do que dizia Caetano em Sampa, narciso acha feio o que É espelho. E, pervertendo Sartre: o inferno é o que somos nos outros.

Mas você acha que eu estou exagerando? Então tá…

Dia desses foi aprovado pela CCJ (Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania), pertencente à Câmara dos Deputados (http://www2.camara.leg.br/) a admissibilidade da Proposta de Emenda Constitucional, a PEC – 99/11; carinhosamente apelidada de “PEC Evangélica”.

Proposta por pelo deputado federal João Campos do PSDB/GO (http://www.joaocampos.com.br/) a emenda propõe:

“Acrescenta ao art. 103, da Constituição Federal, o inc. X, que dispõe sobre a capacidade postulatória das Associações Religiosas para propor ação de inconstitucionalidade e ação declaratória de constitucionalidade de leis ou atos normativos, perante a Constituição Federal.”

Bom… Mas o que diz o artigo 103 da Constituição Federal? Ele diz:

Art. 103. Podem propor a ação direta de inconstitucionalidade e ação declaratória de constitucionalidade:

                                                                                        I.            o Presidente da República;

                                                                                      II.            a Mesa do Senado Federal;

                                                                                    III.            a Mesa da Câmara dos Deputados;

                                                                                    IV.            a Mesa de Assembleia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal;

                                                                                      V.            o Governador do Estado ou do Distrito Federal;

                                                                                    VI.            o Procurador-Geral da República

                                                                                  VII.            o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil;

                                                                                VIII.            partido político com representação no Congresso Nacional;

                                                                                     IX.            confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.

Já entenderam? Explico: a máfia religiosa no Brasil (liderada por algumas Igrejas Evangélicas) quer ter poder de JULGAR constitucionalidade de leis e de práticas no Brasil. Sendo o Brasil, um país leigo, as nove instâncias arroladas acima são capazes de propor inconstitucionalidade a ser julgada pelo Supremo Tribunal Federal… A CNBB (católica), o Supremo concílio da Igreja Presbiteriana do Brasil e a Convenção Batista Nacional – que agora formam essa polícia política e moral – querem ser a décima instância a ter essa prerrogativa.

Não sou contra a expressão política dos agrupamentos religiosos. Mas para isso temos o PSC, e quaisquer outro partido que vincule a expressão religiosa às suas plataformas políticas. Até porque, pense caro leitor: o item de número oito (VIII) já garante a expressão de grupos religiosos se sempre lembrarmos de que religiosos organizam e participam da vida política partidária. Porque mais uma instância a atravancar o bom funcionamento do Supremo? Se as questões religiosas perpassam a maioria esmagadora da sociedade, por que uma interferência política tão direta no âmbito do cerceamento político?

Isso me assusta por que aparentemente não parece mudar nada (na prática, como disse, os políticos religiosamente engajados já dão conta de seus pedidos de inconstitucionalidade), assim como soa como “discurso de proteção aos oprimidos”. Religiosos (que são maioria histórica!) se comportando como minoria histórica (assim como os coloridos que são grupos oprimidos mesmo!). Vê: o ódio de religiosos pela expressão política dos coloridos não impede que esses mesmos (religiosos raivosos) lancem mão da estratégia do inimigo. Vários nomes temos para isso. Eu chamo de cinismo.

Cinismo porque, como todo pensamento totalitário, ele também lança mão da história do país (ou da distorção dela) para justificar seus anseios megalomaníacos, sempre se valendo de um suposto lugar de vítima (Hitler fazia muito bem isso). No texto da PEC (http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=524259 – Clique em “Inteiro teor” para o texto em pdf) há uma breve incursão histórica na qual o narrador conta como as luzes da liberdade venceram as trevas do Estado Religioso quando o Brasil passou de Império à República. Ainda traz luzes para o importante pioneirismo das Assembleias de Deus no que concerne à implantação do movimento pentecostal na nascente República Brasileira… Até aí, beleza.

O clima do texto historicizante é de ternura revolucionária entre Estado e multiplicidade religiosa. Vejamos:

“O movimento evangélico cresce no Brasil, portanto, associado ao sentimento de liberdade cívica que vem à luz com a República, onde a constituição como norma fundamental assume grande significado político, tornando-se, sobretudo, instrumento de garantia individual e de limitação de poder do Estado, e como tal passa a iluminar o sistema jurídico nacional. Neste contexto, não há como não se reconhecer o mérito dos Evangélicos brasileiros em coadjuvar na consolidação de princípios no cerne da Constituição, como garantidores da liberdade de culto e de religião.”

Veja: no texto o movimento evangélico é fonte de liberdade civil, funcionando como um órgão que regula os possíveis abusos do Estado e, assim, traz luzes (ele “passa a iluminar”) nosso nascente sistema jurídico. O movimento evangélico possui fundamental importância para a sociedade e para as políticas no Brasil, mas historiadores especialistas em Primeira República sabem: a pujança política do movimento evangélico nos primeiros decênios da República brasileira é ZERO. (Nada como uma “Invenção da Tradição” para justificar violentos atos políticos, como a PEC).

Por fim, o pulo do gato, o grand finale:

“Com este paradigma, considerando que os agentes estatais no exercício de suas funções públicas, muitas vezes se arvoram em legislar ou expedir normas sobre assuntos que interferem direta ou indiretamente no sistema de liberdade religiosa ou de culto nucleado na Constituição, faz-se necessário garantir a todas as Associações Religiosas de caráter nacional o direito subjetivo de promoverem ações para o controle de constitucionalidade de leis ou atos normativos, na defesa racional e tolerante dos direitos primordiais conferidos a todos os cidadãos indistintamente e coletivamente aos membros de um determinado segmento religioso, observados o caráter nacional de sua estrutura.”

Mentira. Os agentes estatais no exercício de suas funções expedem normas que alteram a vida dos cidadãos. Como grande parte dos cidadãos professam esta ou aquela crença, certamente isso acarretará em mudanças no cotidiano das práticas religiosas. Os “agentes estatais” não podem – impedidos pela própria constituição federal – interferir EM NADA nos assuntos religiosos dessas instituições brasileiras. Ou seja, o texto supõe uma reciprocidade de poder entre Estado e Instituições Religiosas que não é honesta, é cínica. Curioso, quase hilário ver como o texto da PEC, num primeiro momento coloca Estado Republicano e Movimento Evangélico aliados, como Batman e Robin, paladinos juntinhos contra o mal; para, logo em seguida, clamar por mais poder político aos religiosos para que eles (pobres vítimas) possam se proteger das garras nefastas de um certo Estado/Leviatã.

Se você viu V de Vingança, você entendeu como nasce o totalitarismo. Primeiro inocula-se o medo, depois elege-se inimigos senhores de práticas conspiratórias nefandas, depois toma-se o Estado com a justificativa da ameaça fantasma. O que antes era aliado, passa a inimigo aterrorizante.

A “revolução” do Aiatolá Khomeini ocorrida no Irã ao final dos anos 70 se auto-intitulava Islâmica e socialista. A primeira coisa que Khomeini fez assim que chegou no poder foi perseguir e exterminar os companheiros comunistas que o haviam dado apoio. Marcos Feliciano não é um acidente, é um sintoma de grupos doentios que querem criar um país de medo, sob o discurso de uma suposta “proteção à tolerância religiosa” (quando só praticam intolerância).

Talvez o Haiti não seja aqui. Mas o Irã de Khomeini, ao que parece, veio para ficar.

Fábio Casemiro                                                                             

Doutorando em Teoria Literária pela Unicamp

Mestre em Teoria Literária pela Unicamp

Especialista em História Cultural e

Historiador pela Unimep