Abelha morta com três tiros. Por Evandro Mangueira

Posted on 10 de abril de 2013 por

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A travesti Abelha foi morta dentro da pensão que gerenciava em Piracicaba (Foto: Thomaz Fernandes/G1)

A travesti Abelha foi morta dentro da pensão que gerenciava em Piracicaba (Foto: Thomaz Fernandes/G1)

Pretendia escrever sobre identidade de gênero, no momento em que li a notícia: “Travesti de 60 anos que alugava casa a prostitutas é morta em Piracicaba” no G1 – Piracicaba.

E o que era pra ser um texto informativo, talvez ganhe força de indignação, sei que uma notícia dessas está cercada de outros fatores que não só a homofobia, ou nesse caso, transfobia. Entendo que a prostituição e o envolvimento com drogas são fatores que colocam a classe das pessoas que vivem da prostituição em um nível de risco maior que as demais pessoas, independente do gênero, identidade de gênero ou orientação sexual, essas pessoas são mais vulneráveis a esse tipo de crime.

Em agosto do ano passado, a travesti Larissa, que trabalhava com Abelha, foi morta em Piracicaba, também com três tiros, esse caso ganhou real notoriedade pela beleza da travesti e o estado em que se deu a sua morte.

larissa

Esses são casos de destaques, mas a realidade é ainda bem mais cruel e os números de crimes semelhantes são assustadores.

Não pretendo aqui fomentar a discussão sobre a vida promíscua ou os riscos inerentes a profissional do sexo, e nem levantar dados sobre crimes que ocorrem a elas pelo fato de serem travestis ou por se prostituírem. O que trarei aqui é a questão mais elementar, quais as condições que levam uma pessoa a prostituição? Quais os motivos que levam uma menina ou um menino a se aventurar em um mundo obscuro, perigoso e sem certeza de lucro ou de voltar com vida ou saúde para casa (alguns não têm casas, foram expulsos de seus lares, habitam lugares que cheiram a creolina, semelhante à casa que Abelha mantinha). Quais oportunidades a educação? Quais as oportunidades de empregos? Quais as oportunidades de convívios sociais e por fim, quais as oportunidades de afetividade que essas meninas e esses meninos que se prostituem tiveram? Esse sim é fator de homofobia. Explico:

A aparência de quem vive a transcendência do gênero é sem dúvida algo que choca a sociedade, no início, pegando o caso da mulher transexual, o menino começa usando pequenos acessórios femininos e termina por modificar cirurgicamente e através de hormônios a aparecia, na maioria dos casos, já na fase adulta. Esse processo que passa por diversas fases é o que mais causa transtorno na vida do indivíduo transexual, por uma rejeição social somada aos conflitos internos e emocionais que o indivíduo sofre.

Na escola, e já muito cedo, o indivíduo sofre com o que é percebido pelos coleguinhas de sala, professores e pais de outros alunos, como comportamento inadequado. A criança, que já tem tendências a se identificar com o gênero oposto, começa a utilizar recursos de maquiagem, cabelos e unhas, e ao serem rejeitas, criticadas, zombadas (o que hoje em dia é comumente conhecido por “bullying”), percebendo não fazer parte daquele grupo social à maioria das transexuais e travestis abandona a escola, o que definirá sua condição profissional para o resto da vida.

Entre os aqueles que vivem a transexualidade masculina (pessoas que nasceram do sexo feminino, mas se sentem e se percebem como do sexo masculino) esse problema demora a aparecer, uma vez que socialmente as mulheres têm mais liberdade na forma de como usar roupas e cabelos.

Já na fase adulta e transformada parcial ou em sua totalidade, no que viria a ser a adequação do gênero, esse individuo transexual não consegue um emprego que o sustente e sane suas necessidades mais básicas e lhe proporcione dignidade, isso devido à baixa formação acadêmica que já lhe foi castrado, direito garantido na constituição à educação, mais também a falta de oportunidade dado em ambientes profissionais. Questiono a você, leitor, quando foi à última vez que viu uma travesti ou uma transexual trabalhando em algum estabelecimento? Atendendo em uma loja de sapatos, ou em uma padaria? Estou citando as funções mais básicas da sociedade, para não questionar ambientes administrativos, onde o zelo pela beleza e padrões é quase uma ditadura, lembro-me de uma época onde os currículos deveriam acompanhar foto do(a) candidato(a).

Não negarei a possibilidade de que alguns profissionais do sexo tenham entrado nessa vida “fácil”, por escolha, mas não creio que essa seja a regra. Primeiro que deitar-se com estranhos e alimentar os mais diversos fetiches por troca de dinheiro, de pouco dinheiro, correndo os perigos da noite em esquinas de guetos, dividindo espaço com todo tipo de pessoa e que possuem os mais diversos juízos de valores, não me parece ser uma vida realmente fácil.

Essas meninas aprendem cedo a lidar com a violência, a apanhar nas ruas por quem faz cumprir as leis, mas também por quem as desobedecem sem menor receio de punição. Já no início de suas existências descobrem o que é viver da noite, dos crimes, das drogas, dos abusos, das piadas.

Morei muito tempo no centro de Piracicaba, e ao passar pelas ruas deparava-me com algumas profissionais do sexo e não sei quantas vezes presenciei jogarem latinhas de cervejas dos carros, sem falar as agressões verbais, em alguns momentos vi serem tratadas semelhantes aos cachorros sarnentos com quem dividiam espaço (e olha que dos cachorros também sinto uma dor no peito, ao ver suas condições).

É, essa vida não merece o título de fácil. Imagino Berenice conhecida como Abelha, ou Beia, que sobreviveu a esse mundo por sessenta anos, antes de ser executada com três tiros, ser uma vitoriosa. Não que sua vida tenha sido um exemplo, ou que tenha cometido, ou não, diversas coisas erradas, ou moralmente inaceitáveis, mas por ter vivido na pele por longos sessenta anos toda a rejeição social e que provavelmente até pós-morte sofrerá essa rejeição.

Por fim trago um último questionamento, os homens que desfrutam dos serviços das travestis, quem são eles? Seriam os mesmo que jogam as latinhas, ou ainda, seriam os que levam seus filhos e esposas ao zoológico?

Antes de condenarmos uma travesti, pensemos na conduta social como um todo e principalmente na responsabilidade que nos cabe nessa história.

Evandro Mangueira, Nascido em 1979 na cidade de Cajazeiras, que tem por título “A cidade que ensinou a Paraíba a ler.” Atualmente mora em Piracicaba-SP, cidade que adotou como sendo sua também. Tem por formação Gestão Financeira, mas encontra-se nas letras tanto quanto se encontra nos números.

Autor do livro: Arcanjo Gabriel