Quando comecei a lecionar, no final do meu primeiro ano letivo, dois alunos ficaram retidos em minha disciplina (na época, História Geral). No dia do conselho de classe, quando a questão foi discutida, me opus a sua aprovação por dois motivos: primeiro porque não haviam nem de longe alcançado a nota mínima e segundo porque a postura dos dois havia sido totalmente alheia às aulas. Enfim, eles não tinham condições nem interesse. Ocorre que ambos eram irmãos e, por infeliz coincidência, filhos de um amigo do colega que lecionava biologia. Este mesmo colega alegou que os garotos deveriam ser aprovados e apresentou seus motivos, com os quais eu não concordei. Insisti na retenção e meu colega se irritou. Olhou para mim com olhos raivosos e praticamente “cuspiu” as palavras: “Você acha que ensinamos alguma coisa? Você não passa de um filósofo”…
Não vou discutir a primeira afirmação do colega sobre sermos ou não capazes de “ensinar alguma coisa”. Isso fica para outro artigo. Mas comento sua segunda afirmação: “você não passa de um filósofo”. Bem, quem dera eu fosse… No entanto, as palavras iradas não visavam me elogiar, e sim me ofender. E ofender como? Ocorre que, implícita na fala do colega, estava a ideia de que a filosofia é algo que não serve para nada, que não tem função prática e que serve apenas para idealismos tolos. Eu, então, seria apenas um idealista que, longe da realidade prática, me perdia em conceitos filosóficos inúteis. Ouvi este mesmo conceito muitas vezes, antes e depois deste fato. “Filosofar” parece ter, para a maioria das pessoas, o sentido de inutilidade mental e de ociosidade, falta de trabalho sério, produtivo. Você já não ouviu a expressão de que “fulano não faz nada, fica só filosofando”? Talvez até tenha mesmo dito isso. Claro, existem “fulanos” e “ciclanos” que não fazem nada mesmo, mas será que isso é filosofar? Eu penso que não, penso que a filosofia é algo muito sério e muito mais necessário do que imaginamos.
Em primeiro lugar, podemos dizer que, genericamente, a filosofia é o exercício da reflexão e, assim, da própria essência humana, uma vez que somos capazes de refletir, indagar e imaginar. A partir desta capacidade “filosófica” é que nasce todo o conhecimento, toda a ciência. Tanto é verdade que na Grécia antiga, na Idade Média e no Renascimento, todo indivíduo que se dedicava à alguma ciência era considerado um “filósofo”. O sistema de titulação acadêmica norte americano mantém este conceito antigo, conferindo àqueles que concluem o doutorado, o título de PhD (doutor em filosofia) mesmo que a área não tenha nada a ver com filosofia propriamente dita.
Em segundo lugar, a filosofia tem, como um de seus múltiplos conceitos, a busca permanente da felicidade humana através desta mesma reflexão que citei inicialmente. Se você observar bem, no pensamento da maioria dos filósofos, o que esta em discussão são os eternos dilemas humanos: o sentido da nossa vida, do sofrimento e do prazer, as razões de ser da sociedade e da sua organização, o sentido de nossas perdas e da perda definitiva, o fim da vida. De uma forma ou de outra estas reflexões e preocupações ocupam a maior parte do pensamento filosófico, alguns, é verdade, com visões mais pessimistas, outros com visões mais otimistas, mas está aí a grande importância do pensamento filosófico para todos nós: ele visa a construção da felicidade através da indagação e da reflexão.
Agora me diga, estas questões não são importantes? Você nunca se questionou sobre nenhuma delas? Sobre a morte e a vida? Se questionou e refletiu, então você “filosofou” e fez muito bem. Alguns podem argumentar que refletiram sim, mas que encontraram o apoio na religião e não na filosofia. Ocorre que a teologia, que norteia as religiões modernas, é um ramo da filosofia, logo religião e filosofia estão interligadas e ainda por cima buscam as mesmas respostas.
Meu ex colega quis me ofender. Sem querer ele me elogiou. E para os que pensam como ele, transcrevo aqui, para finalizar, um trecho da “Carta sobre a Felicidade” de Epicuro, que traduz bem a importância de “ser filósofo” que o ex-colega deveria ter percebido: “Que ninguém hesite em se dedicar à filosofia enquanto jovem, nem se canse de fazê-lo depois de velho, porque ninguém é demasiado jovem ou velho para alcançar a saúde do espírito. Quem afirma que a hora de dedicar-se à filosofia ainda não chegou, ou que ela já passou, é como se dissesse que ainda não chegou ou já passou a hora de ser feliz.”
PS: meus agradecimentos a Silvana Hion, do Espaço Poíesis pela inspiração e por ter me presenteado com um exemplar de “Carta sobre a Felicidade”.
Evandro
13 de abril de 2013
Quando as pessoas resolvem ofender, geralmente caem no campo da completa ignorância!
Anna Flavia
13 de abril de 2013
Luis, adorei o texto. Está parecendo muito com trechos de O Mundo de Sofia!
Daisy Costa
13 de abril de 2013
Realmente, a Teologia e a Filosofia se cruzam em vários pensamentos. Quer saber? Atualmente os filósofos são imprescindíveis! Precisamos de pensadores nesta selva de pedra…
Valéria Pisauro
13 de abril de 2013
O mesmo acontece com Literatura…pra que ler coisas tão ultrapassadas?!
Silvana Hion
15 de abril de 2013
Caro Professor, foi um prazer podermos compartilhar momentos no Jardim, e filosofar na companhia de Epicuro, belo texto. Abraço, Silvana Hion