Almoçava, fazia lição de casa male má como se dizia e, rua. Só voltava ao anoitecer, sujo como porco; dedão sem tampa, coberto de sangue ressecado e terra. O coro que tomava fazia parte da aventura. Mas valia a pena. Depois a gente até socializava como tinha sido a surra. Eu achava que era pouco pelo que merecia; minha mãe nem que imaginasse saberia o quanto eu aprontava e quanto me fazia de surdo ao seu chamado para levar café para meu pai na barbearia, bem no pico da brincadeira. Não gostava também quando ela me mandava ao armazém do seu João comprar sal, que vinha num saquinho de pano; sardinha, mortadela – nossa mistura oficial; pó de café moído na hora e óleo tirado de um tambor.
Éramos oito, três mulheres e cinco homens. Nos meus dez anos, os irmãos de cima já trabalhavam e só restavam os três últimos, dos quais eu era o líder. Ter vários irmãos é muito bom porque em vez de egocêntrico e mimado a gente se torna mais equilibrado e camarada; além de crescer mais solto, com espaço para daninhar e livre da influência direta das neuras paternas e maternas.
Se eles soubessem que jogamos bosta fresca de cavalo na janela da dona Joaquina; que meu irmão caçula comia toda a mistura da mesa da vizinha dona Lola; que a gente jogava pedra no rancho de lata do seu Pachola só para ele gritar “fiadaputaaaa”; que não foi o rato, mas meu irmão e eu com uma espingarda de chumbo estouramos os vidros cheios de parafusos usados por meu pai; que meu irmão era chamado de cabrita porque berrava “béééé” na porta do Mercadão; que eu apertava a campainha da casa do seu Alcides e corria; via tevê na casa dos vizinhos; dava uma de Tarzan por cima das árvores e passava a mão nas meninas, teriam quebrado a gente.
Só endireitei um pouco depois de virar coroinha na Igreja dos Frades, como a maioria dos meus irmãos. Não me esqueço do dia em que me apresentei ao Frei Miguel. Acho que eu tinha 11 anos. Ele deu um livreto para eu decorar. Latim puro. A primeira fala era do celebrante: “Introibo ad altare Dei”. A gente respondia: ”Ad Deum qui laetificat iuventutem meam”. Padre: “Aduitorium nostrum em nomine Domini”. “A gente: Qui fecit caelum et terram”. Até hoje me intriga a paciência de Frei Miguel em ensinar tudo aquilo e ainda nos fazer sentir honra em ser coroinhas.
Gostava de ajudar a missa. Quando era escalado para a das 5:30 da manhã, minha mãe me chamava às 5 e lá ia eu. Às vezes esperava abrir a igreja junto com as nonas. À tarde brincávamos no quintal do convento. O barracão era o “forte” e o cafezal, que ficava a frente, era a floresta onde ficavam os “índios”, que sempre invadiam e tomavam o forte. À noite Frei Miguel nos reunia para jogar tômbola e ensinar muitas coisas, especialmente sobre Nossa Senhora por quem fiquei apaixonado.
Dentre os vários frades, frei Vital tinha uns 90 anos. Surdo, caminhava com muita dificuldade. Dificil de lidar; era bravo e pelo olhar adivinhava as malandragens que a gente fazia. O único coroinha com quem ele tinha afinidade era o Chiquinho, menino de coração transparente e grande bondade. Chiquinho, que morava no Jaraguá, ficou vários dias sem ir à igreja. Estava doente; a febre não cedia. Certa manhã alguém bateu à porta. Era frei Vital. Foi até a cama onde Chiquinho estava, deu-lhe uma bênção e foi embora. À tarde Chiquinho já estava na igreja completamente são.
Hoje, ser criança é perda de tempo; ser coroinha é cafona; bater nem pensar. Concordo, principalmente tendo pais distantes e fúteis, que se orgulham por terem em casa periguetes precoces e miniaturas de adultos. Além do mais, seria covardia bater nessa molecada insossa, insípida e amorfa como a de hoje, e que nem para aprontar serve.
Antônio Carlos Danelon, o Totó, é assistente social e assina esta coluna às sextas feiras.
totodanelon@ig.com.br
Carla Betta
19 de abril de 2013
Não é saudosismo de gente gagá. Não é a defesa da surra. Havia muita inadequação no modo em que minha geração foi criada. Mas, passamos em tão pouco tempo de um extremo ao outro. Era tão bom brincar na rua, ô, se era! É verdade: nossos pais não sabiam de metade do que fazíamos. Chegar da escola, fazer a lição e… rua! Guerra de mamonas, guerra de lama, queimada, andar de bicicleta. Faltava diálogo e escapamos por um triz de sermos estupradas: eu, minha irmã e u’a amiga por um cara que olhava revistas de mulheres peladas, andando pela rua. Uma das bicicletas quebrou e ele se ofereceu para ajudar, mas –a título de encaixar melhor o banco da magrela- ficou se esfregando em nossas mãos que seguravam o banco. …. Bem, nada aconteceu e eu levei anooooss para entender o que havia se passado. (Que nojo!!) Voltamos com a bicicleta quebrada e o problema era na correia, vejam só! Então, essa história –como todas- é multifacetada. Se –por um lado- a minha infância na capital foi mais solta e divertida que a de meus filhos no interior; por outro lado, faltou diálogo_ e as mazelas advindas dessa falta. Éramos mais aventureiros e mais seguros de si porque o mundo não nos metia tanto medo! Éramos livres, ao menos, da hora depois da lição até o entardecer. Escurecendo e voando para chegar em casa, ai se chegasse depois que a noite escurecesse as ruas! Era surra, na certa, chineladas. Sabíamos o significado de regras e disciplina. Grande vantagem na luta pela vida! Éramos crianças!! Que prêmio!! Adorávamos ser crianças, ainda que fizéssemos muchocho às negativas. Na mesa grande da sala da minha avó sentavam os adultos e nós ficávamos relegados à mesa da cozinha, com liberdade para falar, implicar, contar nossos causos e comer à vontade! Eu não gostava muito de comer e poder sentar à mesa sem comer nada e sem broncas por conta disto já era a festa!! Falávamos mal dos adultos à vontade, com respeito e baixinho (pssiiuu!), é claro! Esses mini-adultos que hoje conhecemos são dignos de pena e compaixão e os seus pais, ah! esses sim, merecem uma surra daquelas de antigamente!… Não é saudosismo de gente gagá. Não é a defesa da surra.
Daisy Costa
20 de abril de 2013
Esse Totó…sempre surpreendendo! Brincadeira de criança, como é bom!!!
Compartilho com a reflexão de Carla Betta (acima)
Antonio Carlos Danelon
22 de abril de 2013
Valeu, Daisy. Obrigado.
Carla, realmente faltou surra para muitos pais de hoje. Não a surra da intolerância. Surra de quem ama e realmente se preocupa com o futuro dos filhos. Mundando de pato pra ganso quando você vai nos brindar com um texto seu.
Carla Betta
22 de abril de 2013
Vixe, Totó, obgda pela confiança, mas acho que não saberia escrever, não.
Antonio Carlos Danelon
23 de abril de 2013
E quem escreveu o texto acima tão gostoso de ler?