Há alguns anos atrás (2005/2006?), assistia-se na TV, principalmente na TV-Cultura, uma campanha que questionava: Onde você guarda seu racismo?
O Brasil tem a fama de país não-racista, de harmonia entre as “raças”, onde árabes e judeus são amistosos vizinhos e, teoricamente, onde brancos e negros se misturam social e afetivamente.
Doce ilusão? A partir do momento que comecei a namorar um negro desfez-se a nuvem que obnubilava minhas percepções. Jamais supus que minha família –tão calcada em valores cristãos- e que meu pai, assumidamente socialista em plena ditadura, fossem estranhar um namorado negro.
(Esclarecendo: não é “de cor”. Todos nós somos “de cores”, já que não somos transparentes e também não é “preto” e nem sei porque, pois não me incomoda ser chamada por “branca”. E ainda se formos “politicamente corretos” é afro-descendente)
Ainda atônita com a reação de minha família, passei a observar sutis olhares (alguns, bem menos sutis) e “viradas de cabeça” ao passear com meu então namorado. Em plena São Paulo, capital, dos contrastes entre parada gay e espancamento de homossexuais na mesma Avenida Paulista.
Fomos morar em Portugal: eu e o namorado, que foi se transformando em marido pelo projeto de vida em comum e convivência diária. Lá, o preconceito é mais visível e nada disfarçado, porém nem tão escancarado quanto na Espanha, onde um menino grita no ônibus que partilhávamos: !Mira! Un negro y Una blanca!
Grávida, retornamos ao Brasil.
Muito mais que no interior -o que considero estranho- em São Paulo, há o hábito de se levar as crianças para brincarem em praçinhas com areia e brinquedos. Há as praças que também têm espaço para os cães, quadras de esporte, etc… A praça com areia e brinquedos mais próxima de onde morávamos era (talvez ainda seja) uma praça no chiquérrimo e caríssimo bairro Vila Nova Conceição. Sou branca, meu ex-marido, negro e meus filhos… os mais lindos mulatos da face da Terra, quiçá da Galáxia! Então, vamos iniciar os relatos deste meu Brasil, que descobri preconceituoso e racista.
Episódio I:
Na praça da Vila Nova Conceição:
(Senhora) “Que lindo! Penso em fazer como você também!”
(Eu) “???????????”
(Senhora) “Penso em adotar… … .. ”
(Eu) “Mas, eu não adotei ninguém. Eles são MEUS filhos”
…
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…
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…
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(Senhora) “Com licença”
… cochichos… cochichos…cochichos…cochichos… entre as mães e babás frequentadoras da pracinha…
Episódio II:
Retornando da praça da Vila Nova Conceição: uma senhora de origem asiática, se não me falha a memória, japonesa, me pergunta a direção de uma rua e eu respondo. Ao invés de ela seguir na direção indicada, ela passa a seguir a mim empurrando o carrinho de bebê com a minha linda e maravilhosa filhota, que era um bebê deslumbrante! (NÃO É CORUJICE! Vejam e comprovem!)… Incomodada, eu expliquei-lhe de novo o caminho e ela continuou a nos seguir… Parei e perguntei se ela havia me entendido, pois -visivelmente- ela falava bem mal o português e aí então, dei-lhe o ensejo de me bombardear com perguntas e meias-frases indignadas sobre o fato de eu ter uma filha mulata, que sim era minha, com muito orgulho e com mais orgulho ainda, havia nascido da minha barriga!! … … … Fui embora, deixei-a falando sozinha, com expressão de nojo (a minha) Bem, a dela também! … … …
Episódio III:
No supermercado, minha filha já andava e meu menino estava no carrinho de bebê. Percebo que uma senhora nos segue e de vez em quando pergunta: “Onde fica a seção de molho de tomate?”; “Onde fica a seção dos desinfetantes?”; etc; mas, estranhamente, sempre nos encontramos pelos corredores do supermercado. Ela para e me pergunta: “São seus filhos?” Respondo: “São meus filhos”. Novo encontro pelos corredores: “São seus filhos mesmo?” Respondo: “São meus filhos mesmo”. Novo encontro pelos corredores e eu já estava irritada: “Mas, são seus filhos mesmo? Qual é o problema de dizer que são adotados?” Respondo: “São meus filhos mesmo, já disse!” E ela não se conforma: “É pior para eles saberem que são adotados por outra pessoa” (!!!!!) (?????) Bem, não vou escrever o que lhes respondi neste tão educado texto, mas ela ficou sabendo o percentual de negros e mulatos no Brasil de um modo nada pedagógico…
Recentemente, convivendo com uma colega de trabalho de descendência japonesa, perguntei-lhe sobre racismo e ela negou qualquer percepção de preconceito, mas –em poucos segundos- ela reviu sua opinião: “Pensando bem, Carla…” E escuto um relato de comentários preconceituosos, brincadeiras de crianças e jovens da escola, classificáveis como “bullyng”.
Neste nosso país das aparências, de um povo afamadamente pacífico, mas cujos índices de homicídio e violências várias alarmam; em que israelenses e árabes são constantemente mostrados em reportagens televisivas como amistosos vizinhos, mas que apelida e isola os que não se assemelham aos euro-descendentes; em que as diferenças regionais são estereotipadas e comicamente retratadas; neste Brasil em que vivemos, imersos em sua cultura miscigenada, mas cujos valores são herdados de Portugal e influenciados pelos E.U.A.: onde você guarda o seu racismo? Se, até para escolher animais de estimação, damos preferência aos “de raça” e ainda escolhemos qual “raça”, compactuando com a criação de raças geneticamente selecionadas: onde você guarda o seu racismo? Ao caminhar por uma rua pouco iluminada: onde você guarda seu racismo ao se deparar com um afrodescendente? Onde você guarda suas idéias preconcebidas?
ONDE VOCÊ GUARDA O SEU RACISMO?
Enquanto não tivermos coragem de efetivamente SERMOS a mudança, como nos orientou Ghandi, o que será do mundo?
Fabio Lisboa
14 de maio de 2013
Impressionante as experiências “na pele” que nos marcam pra sempre! Recomendo o filme Crash – no limite.
Anônimo
14 de maio de 2013
Outro artigo muito bom, Carla! Penso que um dos caminhos desveladores da hipocrisia dos jargões que pregam a igualdade é o de falar de nossas experiências… Parabéns pela ousadia e pela qualidade de suas reflexões.
Anônimo
14 de maio de 2013
Cadê o “Mito da Democracia Racial”?!
Parabéns Carla.
Marina
14 de maio de 2013
Parabéns pelo texto prima! Nunca esqueci o dia de quando vocês moravam em São Paulo e me ligaram no meio da noite para levá-los ao pronto socorro para levar seu filho que passava mal porque nunhum taxi parava para seu ex-marido… lamentável…
Evandro Mangueira
14 de maio de 2013
Acho que a Carla conseguiu traduzir situações tão delicadas e tristes com um certo ar lúdico, parabéns pelo desprendimento do ranco. Marina, concordo com você, o preconceito obriga passarmos por situações que só nos resta lamentar mesmo!