Crônicas de Telópoli: Elogio ao Eu (de Augusto dos Anjos). Por Fábio Casemiro

Posted on 13 de maio de 2013 por

0



Eu e Dani Backer

Segunda-feira, 06 de maio de 2013. Há 105 anos e 3 dias atrás (3 de maio de 1907), Augusto dos Anjos finalizava aquele que seria um de seus mais célebres poemas: “Gemidos de Arte”. O poema compõe a obra EU, publicada em 1912, dois anos antes de sua morte.

Gemidos de arte

(Trechos)

 

Esta desilusão que me acabrunha

É mais traidora do que o foi Pilatos!…

Por causa disto, eu vivo pelos matos,

Magro, roendo a substância córnea da unha.

 

Tenho estremecimentos indecisos

E sinto, haurindo o tépido ar sereno,

O mesmo assombro que sentiu Parfeno

Quando arrancou os olhos de Dionisos!

(…)

 

Os pães — filhos legítimos dos trigos —

Nutrem a geração do ódio e da Guerra…

Os cachorros anônimos da terra

São talvez os meus únicos amigos!

 

(…)

 

Quisera, antes, mordendo glabros talos,

Nabucodonosor ser no Pau d’Arco,

Beber a acre e estagnada água do charco,

Dormir na manjedoura com os cavalos!

Mas a carne é que é humana!  A alma é divina.

Dorme num leito de feridas, goza

O lodo, apalpa a úlcera cancerosa,

Beija a peçonha, e não se contamina!

Ser homem! escapar de ser aborto!

Sair de um ventre inchado que se anoja,

Comprar vestidos pretos numa loja

E andar de luto pelo pai que é morto!

 

(…)

 

O Sol agora é de um fulgor compacto,

E eu vou andando, cheio de chamusco,

Com a flexibilidade de um molusco,

Úmido, pegajoso e untuoso ao tato!

 

(…)

 

Pelo acidentadíssimo caminho

Faísca o sol.  Nédios, batendo a cauda,

Urram os bois.  O céu lembra uma lauda

Do mais incorruptível pergaminho.

Uma atmosfera má de incômoda hulha

Abafa o ambiente.  O aziago ar morto a morte

Fede.  O ardente calor da areia forte

Racha-me os pés como se fosse agulha.

Todas as tardes a esta casa venho.

Aqui, outrora, sem conchego nobre,

Viveu, sentiu e amou este homem pobre

Que carregava canas para o engenho!

 

(…)

 

Nos outros tempos e nas outras eras,

Quantas flores!  Agora, em vez de flores,

Os musgos, como exóticos pintores,

Pintam caretas verdes nas taperas.

 

(…)

O cupim negro. broca o âmago fino

Do teto.  E traça trombas de elefantes

Com as circunvoluções extravagantes

Do seu complicadíssimo intestino.

 

O lodo, obscuro trepa-se nas portas.

Amontoadas em grossos feixes rijos,

As lagartixas dos esconderijos

Estão olhando aquelas coisas mortas!

 

Fico a pensar no Espírito disperso

Que, unindo a pedra ao gneiss e a árvore à criança,

Como um anel enorme de aliança,

Une todas as coisas do Universo!

 

E assim pensando, com a cabeça em brasas

Ante a fatalidade que me oprime,

julgo ver este Espírito sublime,

Chamando-me do sol com as suas asas!

Gosto do sol ignívomo e iracundo

Como o reptil gosta quando se molha

E na atra escuridão dos ares, olha

Melancolicamente para o mundo!

 

(…)

 

Seja este sol meu último consolo;

E o espírito infeliz que em mim se encarna

Se alegre ao sol, como quem raspa a sarna,

Só, com a misericórdia de um tijolo! …

Tudo enfim a mesma órbita percorre

E as bocas vão beber o mesmo leite…

A lamparina quando falta o azeite

Morre, da mesma forma que o homem morre.

 

Súbito, arrebentando a horrenda calma,

Grito, e se grito é para que meu grito

Seja a revelação deste Infinito

Que eu trago encarcerado na minh’alma!

Sol brasileiro! Queima-me os destroços!

Quero assistir, aqui, sem pai que me ame,

De pé, à luz da consciência infame,

À carbonização dos próprios ossos!

 

(Augusto dos Anjos 1884 – 1914)

 

Mal compreendido entre mal compreendidos, os poemas da obra Eu (hoje, mais comumente editada com a parte denominada “Outras poesias”) são categorizados como “pré-modernos” e, como epíteto, seu autor ganhou o de “O Poeta da Morte”. Foi o crítico Antônio Torres que pouco mais de um mês de sua morte publicou, no Jornal do Comércio do Rio de Janeiro, um texto carregando tal apelido no título: nasceu o mito “Augusto dos Anjos”.

Digo que “nasceu o mito”, pois é disso que se trata quando falamos da obra Eu: o mito, ou seja, aquilo que se atribui ao homem Augusto dos Anjos toma de assalto a leitura antes que o leitor o faça, antes que a leitura profunda de uma obra tão refinada anuncie suas cores. Não se trata, entretanto, de nos desfazermos da aura que circunda a obra literária; ao contrário, a graça da pesquisa em teoria literária reside na leitura atenta de textos à luz dos demais diálogos que inevitavelmente esses textos carregam. Assim, não quero afirmar, por hora, que Augusto seja ou não seja o poeta da morte, mas quero, num primeiro momento pensar: que morte é essa que dizem que o poeta Augusto dos Anjos nos traz?

“Eis por que lhe chamo ‘poeta da morte’, porque não amava a Vida nem o Amor. Estava no seu direito, ou melhor, na sua fatalidade.” (Antonio Torres; “O poeta da Morte” In: Augusto dos Anjos. Obras Completas, p.38).

Essas são as palavras do crítico – para ele “Amor” e “Vida” são eventos contíguos e inseparáveis: daí que não cantar o “Amor” implica em cantar a “Morte”. Veja que mais do que “direito” pressuposto ao poeta (como quer Antonio Torres), esse canto de morte estaria traçado no destino de Augusto: era, para ele, sua “fatalidade”. Do latim, fatumquer dizer “sentença divina”… Entretanto não podemos esquecerque nossa cultura ocidental cientificista colocou a verdade científica no lugarda divindade (um dos nossos legados do XIX): anos mais tarde, com o texto crítico de Órris Soares (“Elogio de Augusto dos Anjos” – 1919) o destino do poeta rumo à morte, ao doentio dar-se-ia, não pela vontade de supostoSer Superior, mas pelas condições sócio-patológicas atribuídas ao poeta. Augusto cantava o sofrimento porque estaria fadado a três diferentes condições: 1. Individual (a condição de doente que carregaria em vida); 2. Melancolia da raça (o poeta carregaria a dor dos indígenas outrora perseguidos e dos negros antes escravizados) e, finalmente, 3. Espiritual do Brasileiro (que viveria em sua busca pela autenticidade intelectual, mergulhado numa região de atraso social, periférica em relação aos grandes centros – europeus, claro – de produção cultural).

De lá para cá, muita coisa se produziu sobre o poeta. E esse é, justamente, o problema… Grande parte da crítica quer ler, erroneamente em minha opinião, o autor pela obra (metonímia desliterária?), acabando por ler o mito Augusto dos Anjos antes de ler a obra Eu. Particularmente, no caso da obra em questão, quando tomam o livro nas mãos, os leitores – muitos deles desconhecendo estilos literários – partem para o Eu como quem lê versos de um poeta ultrarromântico… moral da história: Augusto dos Anjos se torna um poeta de fundas olheiras (como sugere Órris, que o conheceu pessoalmente) com uma caveira shakespeariana entre os dedos (como os românticos leem Hamlet) vitimado pela tuberculose como um Álvares de Azevedo… (E eis que a história literária repete sua farsa: Azevedo morreu por complicações no fêmur depois de acidente a cavalo – e nunca de tuberculose como querem as apostilas de Ensino Médio! – e Augusto que não era romântico, morreu de pneumonia – que não é tuberculose, mas funda lendaspseudo-literárias da mesma forma).

Estudar literatura pressupõe o estudo dessas confusões. Há que se desvencilhar delas para atingir as possibilidades do artefato literário? Claro. Contudo não podemos nos esquecerque esses paratextos compõe a leitura da obra e implicam na recepção pelo público. Uma crítica literária plena, não pode se furtar desses fenômenos.

Mas voltemos ao grande responsável pela mitologia angelista: Antonio Torres. Ele assim inicia seu texto:

“Não venho falar de Baudelaire nem da ‘Charogne’.

O Poeta da Morte a quem me refiro é bem outro.

É um bárbaro, nascido à sombra dos buritizais da Paraiba e falecido há pouco nas montanhas brumosas de Minas. Falo de Augusto dos Anjos.

Era um poeta estranho sui generis no Brasil.” (A. Torres. “O Poeta da Morte” A. dos Anjos, O. C. p,52)

 

Neste início de texto temos que “poeta da morte” é epíteto, segundo Torres, de outro poeta, o francês Charles Baudelaire (1821-1867) que escreveu a famosa obra As Flores do Mal, na qual temos o poema, por ele mesmo citado,“Une Charrogne” que, em português, pode ser traduzido como “Uma Carniça”:

Uma carniça

 

(Trad. de Ivan Junqueira)

 

Lembra-te, meu amor, do objeto que encontramos

Numa bela manhã radiante:

Na curva de um atalho, entre calhaus e ramos,

Uma carniça repugnante.

 

As pernas para cima, qual mulher lasciva,

A transpirar miasmas e humores,

Eis que as abria desleixada e repulsiva,

O ventre prenhe de livores.

 

Ardia o sol naquela pútrida torpeza,

Como a cozê-la em rubra pira

E para ao cêntuplo volver à Natureza

Tudo o que ali ela reunira.

 

E o céu olhava do alto a esplêndida carcaça

Como uma flor a se entreabrir.

O fedor era tal que sobre a relva escassa

Chegaste quase a sucumbir.

 

Zumbiam moscas sobre o ventre e, em alvoroço,

Dali saíam negros bandos

De larvas, a escorrer como um líquido grosso

Por entre esses trapos nefandos.

 

E tudo isso ia e vinha, ao modo de uma vaga,

Ou esguichava a borbulhar,

Como se o corpo, a estremecer de forma vaga,

Vivesse a se multiplicar.

 

E esse mundo emitia uma bulha esquisita,

Como vento ou água corrente,

Ou grãos que em rítmica cadência alguém agita

E à joeira deita novamente.

 

As formas fluíam como um sonho além da vista,

Um frouxo esboço em agonia,

Sobre a tela esquecida, e que conclui o artista

Apenas de memória um dia.

 

Por trás das rochas irrequieta, uma cadela

Em nós fixava o olho zangado,

Aguardando o momento de reaver àquela

Náusea carniça o seu bocado.

 

– Pois hás de ser como essa infâmia apodrecida,

Essa medonha corrupção,

Estrela de meus olhos, sol de minha vida,

Tu, meu anjo e minha paixão!

 

Sim! tal serás um dia, ó deusa da beleza,

Após a benção derradeira,

Quando, sob a erva e as florações da natureza,

Tornares afinal à poeira.

 

Então, querida, dize à carne que se arruína,

Ao verme que te beija o rosto,

Que eu preservei a forma e a substância divina

De meu amor já decomposto!

 

(Charles Baudelaire)

 

Muitas diferentes questões se levantam quando comparamos os poemas de Baudelaire aos poemas de Augusto dos Anjos. Seriam ambos, poetas da morte, como nos quer demonstrar Antônio Torres?Parece muito redutor colocarmos ambas as líricas sob o epíteto de “poesia da morte”. No poema de Baudelaire, o amor carnal está presente e, de tão carnal chega às vias de fato, às últimas consequências da realidade material: a podridão, a carniça. A putrefação está denunciando a condição humana da beleza da amante do eu-lírico.

Interessante observarmos como há em “Uma Carniça” de Baudelaire e “Gemidos de Arte” de Augusto dos Anjos, elementos comuns: “senso da decomposição e castigo da carne”, a natureza como espectadora, o Sol, o cachorro, o verme… Os versos de “A Carniça” entretanto, parecem buscar a beleza para além do erótico, colocando a decomposição como lugar de observação (e denúncia) do mundo. No jogo coreográfico, cadenciado e circular, entre o céu e o chão, diagnosticando o embuste da beleza, pelo apodrecimento que liberta (que abençoa) cabe ao poeta, tendo como testemunhas a carne apodrecida e o verme que a devora (em beijos), a confecção da poesia como retrato, como documento à beleza ainda fresca, antes de sua corrupção – desejada e inevitável. É pelo artifício (arte) que a beleza se manifesta… A beleza material, real, se desmascara pela decomposição.

É o que temos em “Gemidos de Arte”? Sim e não.

O que está em jogo em “Gemidos” é outra coisa: temos que o eu do poema de Eu reconhece sua condição de cógito ergo sum (penso logo existo), mas sua consciência o inferna, sua racionalidade o diminui enquanto ser vivente. Ser homem é deixar de ser animalesco e, por isso, sua condição evoluída o torna miserável. Em Augusto temos a crítica – em termos tratadísticos, isso é: na forma de um estudo filosófico – ao evolucionismo, ao cientificismo. Esse eu-lírico sabe do peso da civilização intelectualizada e reconhece o desejo – vil, decerto – pela justiça racional e logocêntrica cristã. A materialidade da natureza se impõe ao poeta em sua condição vérmica (é um molusco rastejante ao sol) e, o que resulta dessa imagem não é sofrimento indesejado, mas dor (gemido) desejada porque redentora (“… quero, em vez do nome – Augusto,/ Possuir aí o nome de um arbusto/ Qualquer ou de qualquer obscura planta!).

Interessante observarmos como o “senso de decomposição” está presente em ambos os poetas, mas dizendo constelações tão diferentes. Augusto conhecia os versos do poeta francês? É claro! Alimentou-se de seus poemas? Certamente. Cabe a nós compreendermos em que se transformou essa digestão.

Temos nos versos de Eu outras preocupações diferentes da lírica do malsão francês: se o paradigma de arte para Baudelaire era a pintura (era ele O pintor da vida moderna), para Augusto, a postura era a do filósofo “Esse mineiro doido das origens,/Que se chama o Filósofo Moderno!”. Criando um gênero de poesia que funde o tratado científico às confissões (o “Charogne” de Baudelaire mais se aproxima da sátira à canção lírica), sua poesia (de Augusto) parece nos convidar para uma leitura mais próxima da leitura que fazemos dos aforismos de Nietzsche(…mais do que da lírica de um Álvares de Azevedo, por exemplo).

E onde ficou nossa poesia da morte, como quis Antonio Torres? Não diríamos tal, nem para os versos d´As Flores do Mal, nem para os de Eu. Em ambos a decomposição aponta para novos modos de compreender, de experimentar o mundo. Não há culto à morte. Há decomposição da vida, rumo a outras possibilidades de vivência. A poesia moderna, bem lida (e temos Charles Baudelaire e Augusto dos Anjos como poetas modernos) mostra-se mais do que entretenimento: ela educa, ela propõe, ela investiga.

Minha pesquisa de doutorado almeja compreender o que esses poemas de Augusto dos Anjos, já centenários, podem nos dizer sobre a vida, sobre civilização, sobre cultura e sobre a própria poesia. A mim, pesquisador de literatura, não me cabe saber da vida do homem, Augusto dos Anjos, por si; mas cabe, sim, buscar o que os poemas que ele escreveu podem dizer para os leitores de poesia que somos hoje. Biografismo é menos do que a história, verdade poética é além da história.

*

Para além das teorias, deixo aqui ao Eu de Augusto minha homenagem mais singela: seguem as leituras que gravei para publicação no YouTube de dois poemas profundamente ligados entre si, dentro da obra Eu. “Gemidos de Arte” e “Tristezas de um Quarto Minguante”. Ouçam e deixem os mistérios do mundo desvoluído encantarem (e transformarem) seus sonhos.

Gemidos de arte http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=uVfOe43_6uI

Tristezas de um Quarto Minguante http://www.youtube.com/watch?v=Ndbkd2EL0DM

 

Fábio M. Casemiro                                                                      

Doutorando em Teoria Literária pelo IEL/UNICAMP

Mestre em Teoria Literária pelo IEL/UNICAMP

Especialista em História Cultural e

Historiador pela UNIMEP