A Manifestação de Piracicaba que eu vi. Por Luis Fernando Amstalden

Posted on 21 de junho de 2013 por

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tiago godoy

Foto partilhada por Tiago Godoy, pelo Facebook

As estimativas falam em uma cifra de 12 a 20 mil pessoas nas ruas em Piracicaba – SP, na noite de 20 de junho de 2013. Eu era uma delas.

Cheguei ao Terminal Central de Ônibus as 16:50 hrs. Antes disso havia me encontrado com um grupo de alunos da EEP, mas como eles ainda esperavam algumas faixas e, confesso, eu estava ansioso, acabei caminhando sozinho até o ponto de início do protesto. No caminho, um grupo de garotas saídas de uma escola técnica. Todas jovens e de origem visivelmente humilde. Estavam animadas e levavam um abaixo assinado contra o aumento dos ônibus.

Na “contramão” uma senhora passa por mim resmungando que depois de um dia de trabalho tinha que tomar o ônibus em outro lugar. Posso entender. Para ela que talvez já tenha visto outras manifestações e, quem sabe, até participado de alguma, nada vai mudar e interessa mais chegar logo em casa e descansar, já que ninguém sente o cansaço dela. E ela pode ter razão. Pode ser que nada mude mesmo, mas pode ser que mude… Quem sabe?

Perto do Terminal, na verdade atrás dele, encontro alguns ex alunos da GM. Policiais da Guarda Municipal de Piracicaba para quem eu leciono Cidadania, Ética e Direitos Humanos desde 2008. Cumprimentam-me alegres e eu brinco, pergunto se vão me bater mais tarde. Em referência ao meu artigo anterior (Porque vou para as ruas nesta quinta feira) um deles devolve a brincadeira: ”mas o senhor disse que se a gente jogar gás, não vai ficar chateado”. Outro me diz: “professor, lembra eles aí que a gente tem direito 30% de abono de periculosidade e a prefeitura não nos paga”.

Na praça do terminal, pessoas chegando e outras já gritando e levantando cartazes. Começam outros encontros. Alunos, alunas, amigos, conhecidos. Um grupo de alunos tem um cartaz e canetas. Peço um e uma delas escreve a frase que dito (minha letra é horrível), “Por 30% de periculosidade para a GM”. Não, não foi “puxasaquismo”, foi coerência. Eles têm este direito e lhes é negado. E é o meu dinheiro de impostos que esta sendo usado para construção de passarelas inúteis sobre o Rio Piracicaba. Se quero segurança, se quero uma polícia cidadã e não uma polícia opressora, eles tem que ser pagos de maneira justa. Assim, eu que não levara cartazes por não saber o que das muitas coisas que gostaria iria escrever, acabei com este nas mãos.

A minha volta estava a beleza. Jovens, muitos jovens. Alguns quase crianças, outros com skates e tatuagens. Jovens da periferia, de classe média e até alguns bem melhor vestidos. Mas a beleza não estava na sua juventude e sim na sua alegria. Eles nunca haviam visto uma manifestação destas. Não imaginavam viver isso. Estavam em festa, eufóricos. Gritavam que o “Brasil Acordou” e que o poder é do povo. Nos cartazes, não a PEC 37, não a corrupção, não ao aumento de tarifas dos ônibus (que aqui é mais cara do que em São Paulo) e outras, muitas outras palavras de ordem. Não vi nenhuma com a qual não concordasse.

O deslocamento começa e eu, distraído, acabo separado da multidão por uma grade de aço que tenho que pular, para a alegria da garotada que gritava “vem pra cá, tio” ou “não vai cair, tio”.

Seguimos a avenida Armando Salles até a ponte do Mirante. Só então eu começo a tomar consciência do enorme número de pessoas. Não consigo ver nem o início e nem o final. Ao longo da avenida, carros ficam ilhados entre a multidão, mas não há agressões. Muitos buzinam em apoio, outros fotografam e alguns acenam e sorriem. Da parte dos manifestantes a mesma coisa. Pelo menos no trecho que estive, ninguém ofendeu os motoristas ou tocou nos carros. Acima um helicóptero da polícia militar estrondeia e a volta as palavras de ordem se alternam. Alguns xingam o prefeito, mas a maioria grita pelo rebaixamento da tarifa de ônibus ou canta coisas como “sou brasileiro com muito orgulho…”. Claro, alguns brincam. Ao meu lado, em um determinado momento, uma garota pré adolescente grita “Ferrato (o prefeito), quero um Nike!” e depois ri. Mas tenho certeza de que ela quer mesmo um Nike. O condicionamento da sociedade de hiper consumo não vai sumir assim tão fácil.

Atravessamos a ponte nova e subimos até a Igreja Matriz da Vila Rezende. Ali a primeira cena desagradável. Alguns jovens arrancam duas mudas de árvore e as carregam como estandartes. A passeata segue e dobra a rua de volta pela ponte antiga. O trajeto entre a o meio da ponte nova e o meio da ponte velha deve ter uns mil e quinhentos metros, e ainda havia gente cruzando a nova. Era o final da passeata que eu finalmente conseguia ver. Acabo por perto dos jovens que carregavam as mudas/estandartes e, num impulso de irritação, grito-lhes que joguem fora as mudas, que seríamos chamados de vândalos por aquilo. Falei e esperei algum xingamento, mas para minha surpresa, eles jogaram fora.

No final da ponte velha, minha primeira apreensão. Cruzam comigo alguns garotos e garotas. Bem novos, mas com os rostos cobertos por lenços e carregando dois pneus velhos, uma caixa de papelão e sacos de folhas secas. Tentei segui-los, mas desapareceram na rua que se afunila. Um carro de som começa a tocar Raul Seixas e, depois,  outras musicas. A multidão delira e canta junto. Eu também delirei. Depois é o hino nacional, cuja parte que diz que “um filho teu não foge a luta” tinha o tom elevado. Nas ruas agora menores, os moradores saem para as calçadas. Fotografam, aplaudem e, em alguns prédios luzes se acendem e apagam em apoio.

Resolvo me adiantar. Quero ver o começo da passeata e, com isso, chego à Câmara dos Vereadores junto com outros manifestantes. Na frente do prédio a Guarda Municipal com escudos e cassetetes. Foi aí que começou a tensão. Pelo menos foi aí que começou para mim. Manifestantes mais jovens correm, pulam o jardim e se postam diante dos guardas. A maioria vestia bermudas, camisetas simples e muitos as tinham cobrindo o rosto. Vi perfeitamente quando duas bombas juninas foram atiradas da multidão contra os policiais.

Por efeito da adrenalina, cometi uma imprudência. Nem sei como, mas entrei no meio. Fiquei entre os manifestantes, de frente para eles e de costas para os policiais. Pedi calma e argumentei. Disse que estávamos “ganhando” e que se eles atirassem pedras e atacassem os policiais ou o prédio, nós “perderíamos”. Mas aqueles manifestantes queriam sim o confronto. Um deles, forte como um touro, de cabeça raspada e olhos alucinados, gritava comigo. Com o dedo em meu rosto, dizia que ele não tinha emprego e eu sim; que ele andava de ônibus e eu de carro. Ao seu lado, um homem também forte, mas já grisalho, colocava o dedo perto do capacete do policial e dizia que, se a polícia atirasse mais uma bomba, ira haver confusão. Eu disse a ele que não haviam sido  os policiais, mas os manifestantes que atiraram as bombas. Ele se desconcertou, mas o “jovem touro” continuava a berrar comigo. Percebi então que ele achava que eu era um policial e gritei: “não sou ‘polícia’, estou com vocês, e se você for preso, sua situação vai piorar”. Um garoto magrinho, moreninho ao lado do “touro” disse: “Se o senhor não é polícia, está virado para o lado errado”. Respondi que não, que não estava e que não adiantava ser preso ou ferido. O garoto abaixou os olhos e concordou e o touro desviou também os dele. Mas atrás, outro magrinho, com o rosto coberto, empurrou um garoto contra mim, na típica manobra para começar uma briga alheia. Fui salvo por um grupo de manifestantes que, chegando, começou a gritar “sem violência”. Outro grupo surgiu, não sei de onde, e também se postou de costas para os policiais, de frente para os exaltados e desdobrou uma faixa. Nem consegui ler a faixa e não sei quem eram, mas sua presença e os gritos de “sem violência” esfriaram os ânimos. A passeata passava ao nosso lado, seguindo para a praça e o pessoal que estava atrás dos violentos começou a segui-la. O espaço foi-se abrindo e a situação relaxou um pouco, mas não sem antes um ovo atingir um policial.

Comecei a sentir o cansaço da tensão e resolvi sair dali. Fui em direção à praça, mas já havia perdido o ânimo. Encontrei duas alunas felizes, eufóricas que me abraçaram e disseram que nunca haviam visto uma coisa tão bonita como aquela manifestação. Concordei e não tive coragem de dizer a elas que tomassem cuidado. Na praça, alguns corriam e ouvi de longe novamente os gritos de “sem violência” enquanto a passeata seguia em direção ao terminal. Desanimado e ainda tenso, resolvi voltar para casa. Aqui soube que no Terminal começou um confronto direto. Alguns amigos me relataram que “crianças” jogaram pedras na polícia. Soube que houve tiros de balas de borracha e depredações, inclusive em lojas. Depois do que vi na frente da Câmara, não fiquei espantado, fiquei triste. Não posso fazer uma análise racional agora. Estou escrevendo no calor dos acontecimentos. Não sei o que vai acontecer, mas não me sai da mente a imagem do jovem “touro” que me disse a verdade, que eu tinha emprego e carro e ele não. Não me sai da mente o moreninho magrinho que disse que eu estava voltado para o lado errado. Não me sai da mente, de um lado, a alegria de muitos que viam uma manifestação popular de peso pela primeira vez na sua vida e, de outro lado, a revolta dos jovens pobres buscando algo para descarregar sua fúria.

O cartaz que Gabriela Feliciano desenhou para mim e que carreguei. Foto de Juliana Machado Amstalden

O cartaz que Gabriela Feliciano desenhou para mim e que carreguei. Foto de Juliana Machado Amstalden