O dinheiro que tinha dava para viver três meses. Por sorte, na Cantina dos Estudantes, a sopa, o pão e a fruta eram de graça. Foi-se assim esticando o dinheiro até finais de Maio. Na Europa o ano letivo vai de meados de Setembro até Junho. Fiz apenas o suficiente para passar de ano. Era tudo diferente. O português que falavam era difícil de entender o que foi progressivamente sendo facilitado com a chegada das novelas do Brasil. Os livros eram todos em inglês para condizer com a terminologia Anglo-Saxônica utilizada em Medicina.
Chegou enfim o mês de Junho ou como costumava dizer parafraseando a Mafalda do Quino, cheguei ao mês de Junho. Agora não havia mais jeito. Tinha mesmo que trabalhar. Já não tinha dinheiro para nada. Alguém emprestou e nova aventura começou. Fui para a Alemanha trabalhar. O princípio era fazer qualquer coisa que desse dinheiro. A primeira fase da viagem era até Paris de trem. Somente então se decidiria qual o destino seguinte. O habitual era os estudantes irem para Hamburgo no norte da Alemanha, por ser uma cidade industrial e por isso com mais facilidade de encontrar trabalho. Dado ter havido os Jogos Olímpicos recentemente em Munique, que ficaram mais conhecidos pelo ataque terrorista e morte de atletas de Israel, foi essa a direção escolhida.
Chegamos tarde em Paris e perdemos o trem de ligação com a Alemanha. Somente haveria outro no dia seguinte.
A polícia no entanto não permitiu que pernoitássemos na Estação expulsando todos que lá estavam com mangueira de água, devido à presença de muitos toxicodependentes.
Foi uma noite molhada a vaguear pelas ruas da cidade. Foi assim que conheci e debutei na noite parisiense. Foi no entanto muito bom, pois conheci muita gente, inclusive brasileiros, que por lá passavam ou viviam.
Na manhã seguinte seguimos para Munique. Não falava alemão e não tínha indicação de ninguém. A comunicação era difícil pois o inglês era o dos livros e o que tinha aprendido no colégio, mas havia que seguir em frente.
Chegámos por fim a Munique. No bolso tinha apenas três marcos e dava para comer duas vezes na cantina. Na alma trazia a irreverência dos 23 anos.
Como não tínhamos nenhuma referência fomos a lista telefónica tentar descobrir se havia alguma Casa de Estudantes Brasileiros. Havia a Casa do Estudante Latino-americano ou LATAMCO como era conhecida.
Na portaria perguntamos por algum brasileiro, foi-nos indicado um apartamento e ao abrirem a porta não se via nada no interior. Era um fumaçê intenso. Muito Haxixe corria lá dentro. Após as apresentações, um senhor alemão que tinha vivido muitos anos no Brasil se propôs a nos levar à casa de um conhecido seu que era médico e assim talvez arranjássemos emprego em algum hospital.
A entrada da casa era um grande atelier indicando mais tratar-se de um artista que médico. E realmente era. Há anos tinha abandonado a profissão médica e enveredado pela escultura pesada em bronze.
Devia ser bom nessa arte, pois logo ficamos sabendo que naquele ano tinha ganho o primeiro prêmio num concurso de escultura de Paris. Havia um violão no atelier e enquanto esperava que alguém nos atendesse comecei a tocar. Nisso entra na sala sua mulher, poetisa, que estava lançando um livro naquele ano e queria fazer um disco com músicas de seus poemas. Ao me ver a tocar interessou-se pela nossa forma de expressar os sentimentos e quis que eu fizesse algumas músicas para ela. Para tal tiveram que me explicar o significado dos temas e sublinhar a tónica das palavras para poder fazer a música. Na casa dessa poetisa conhecemos a proprietária de uma Imobiliária e esposa de um dos Diretores da Ariola, uma companhia de discos.
Ao me ver tocar interessou-se também e nos convidou para jantar em sua casa para nos apresentar ao marido. Este ficou muito interessado, mas queria que fizesse a versão das minhas músicas para o alemão.
Essa senhora tornou-se uma grande amiga e mais tarde deu-me emprego na sua empresa. Confesso que era bem difícil lá trabalhar. Na parte de escritório tinha experiência do Brasil e contabilidade é igual em todo mundo. O pior era falar ao telefone. Atendia falando inicialmente em alemão, algumas palavras que havia decorado, “Frau Rober ist in moment nicht in buro” e depois pedia para o interlocutor falar em inglês. Se este não falasse inglês e eu estivesse sozinho, o resultado era os dois desligarem os respetivos telefones e tudo ficar por isso mesmo. Isso aconteceu várias vezes. Valeu a pena porque tive sempre um lugar para trabalhar na alemanha daí em diante. Os acontecimentos eram rápidos e em catadupa. Parece que tudo vinha até nós. Não era preciso fazer esforço algum para nos apresentar. Passamos a semana seguinte num castelo em Titmoning na fronteira com a Áustria e perto de Salzburg, onde aproveitei para conhecer a casa-museu de Mozart e seu instrumento de infância o Cravo.
Era um castelo medieval no alto de um monte como aqueles que a gente vê nos filmes de terror com grossas portas que exigia as duas mãos para movimentá-las. Uma parte do castelo estava em restauração, consequência de estragos de invasões de Napoleão. No pátio a sua volta, havia muitas cerejeiras carregadas de frutos. Era a primeira vez que via cereja sem ser em frascos. Até pensava que era aí que nasciam brincava eu!
Uma parte desse castelo era pertença do senhor que conhecemos na Casa de Estudantes Latino Americanos e estava à venda por um milhão de marcos. Foi a senhora que encontramos na casa da poetisa e que tinha a imobiliária que o vendeu. Vejam a volta que a vida dá. Um dia estava tocando violão numas de suas salas quando entra um provável comprador. Era dono de uma gravadora que se interessou também por mim e convidou-me para fazer uma gravação. Mais uma vez a história da versão das minhas músicas para o alemão das minhas músicas veio ao de cima.
Voltamos a Munique mas como estava com grande dificuldade financeira, entrei numa casa noturna, disse que era músico e que pretendia lá tocar. O Gerente perguntou que instrumento tocava. Disse que era violão. Onde está o violão perguntou. Respondi, não tenho. Era verdade. Nunca tinha tido um instrumento, nem no Brasil. Como é possível um músico sem instrumento brincou ele enquanto sorria abertamente. Nunca foi preciso, pensei eu encolhendo os ombros. Sempre toquei nos instrumentos dos outros! Ele entrou numa das salas, trouxe um violão e pediu para eu tocar um pouco. Não foi preciso muito e ele então disse para voltar às 11 horas da noite. Quando voltamos a casa estava cheia com muito movimento e muita música. Ao ver os músicos que tocavam confesso que tive vontade de ir embora. Além de bem vestidos tocavam e cantavam bem. Pareciam mesmo profissionais. Nunca tinha tocado em lugares assim e mais ainda só. No Brasil estava cercado de amigos e na maioria das vezes só cantava e fazia as letras das músicas. Tocar e cantar exige mais. A necessidade no entanto era grande e me fez ficar. Quando fui anunciado entrei, arrumei os microfones e olhei fixamente para o público. De repente era só silêncio. Eu nem sequer tinha pensado o que cantar. Minha camisa estava rasgada na axila direita o que me impediria de me entusiasmar muito. As músicas começaram a sair. Eram músicas expressivas, de grande intensidade e de protesto como dizíamos na época. Apesar de ninguém entender o que estava dizendo, mantinham-se calados, como que saboreando as emoções que iam fluindo com as músicas. Pagavam um Marco por minuto e ganhei o suficiente para viver algum tempo.
No final fiquei sabendo que naquela noite estavam naquela casa, todas as companhias de disco da Alemanha a procura de novos talentos. O escolhido por incrível que pareça fui eu e convidaram-me para fazer uma gravação na Polidor, uma companhia de discos famosa e internacional. Como é óbvio pediram-me novamente para traduzir as músicas para o Alemão e as coisas ficaram por aí. Confesso que não me importava. Sou dos que acreditam que o profissionalismo na música acaba por tirar o gosto e o prazer da mesma. A única coisa que pretendia era ganhar algum dinheiro para continuar os estudos de medicina. A grande vitória, no entanto, foi que acabei por ganhar também um violão. Finalmente ia ter um.
Convidaram-me para tocar um dia também na casa de campo da proprietária de uma rede de colégios internos espalhados por toda a Alemanha numa festa de final de curso.
Foram também outros brasileiros e fizemos um espetáculo com Capoeira. A senhora tanto gostou, que nos convidou para morar nos quartos dos alunos que estavam em férias e com direito ainda a alimentação na cantina. Tudo sem nada pagar. Parecia que a gente era doce. Toda gente ficava enfeitiçada por nós.
Nesse ano criei na Alemanha a estrutura para poder estudar. Nos anos seguintes passava três meses lá e nove meses em Portugal.
Adalton Batista é médico e músico, vive e trabalha na Europa. Aqui ele compartilha parte da sua história conosco.
Valéria Pisauro
7 de agosto de 2013
Dr. Adalton, grande travessia cultural…
Adalton Miguel Batista
14 de agosto de 2013
Hoje criei coragem e vim ler o que escrevi. Parecem coisas de outra vida. Tanto tempo já se passou. Confesso que senti saudades…
Anônimo
14 de agosto de 2013
Grande Adalton!!! Saudades do Amigo!!!
Grande abraço da Família Nascimento, desde as terras do Salvador da Bahia.
Aparecida Baruta Batista
14 de agosto de 2013
Linda história. Já ouvi vc falando pessoalmente de algumas, porém, detalhadamente não. Fiquei emocionada. A vida foi difícil, mas com final feliz! bjusssssss
alemdooceano
16 de agosto de 2013
o que a gente tinha, e o que não tinha, nao fazia falta.. era a vida que queriamos levar e e enfrentar.. pois é meu amigo.. emocionante sua história..
maria Helena C.S.Bueno
25 de agosto de 2013
Oi amigo
Bom relembrar sua história
beijos a vc e à Neusa